Sumário: 3.1 Da pessoa natural, humana ou física. Conceitos iniciais. Personalidade e capacidade. A situação jurídica do nascituro: 3.1.1 Os absolutamente incapazes; 3.1.2 Os relativamente incapazes; 3.1.3 Teoria geral da representação; 3.1.4 Da emancipação – 3.2 Os direitos da personalidade na concepção civil-constitucional: 3.2.1 Introdução. Conceito de direitos da personalidade; 3.2.2 Classificação e características dos direitos da personalidade; 3.2.3 Os direitos da personalidade e as grandes gerações ou dimensões de direitos; 3.2.4 Previsões legais de proteção aos direitos da personalidade no Código Civil de 2002 – 3.3 Domicílio da pessoa natural – 3.4 Morte da pessoa natural: 3.4.1 Morte real; 3.4.2 Morte presumida sem declaração de ausência. A justificação; 3.4.3 Morte presumida com declaração de ausência; 3.4.4 Da comoriência – 3.5 O estado civil da pessoa natural. Visão crítica – 3.6 Resumo esquemático – 3.7 Questões correlatas.
Como se sabe, a todo direito deve corresponder um sujeito, uma pessoa, que detém a sua titularidade. Por isso, prescreve o art. 1.° do Código Civil em vigor que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”. Ao contrário do Código Civil anterior, o atual prefere utilizar a expressão pessoa em vez de homem, constante do art. 2.° do Código de 1916, e tida como discriminatória, inclusive pelo texto da Constituição de 1988, que comparou homens e mulheres (art. 5.°, I). Esse mesmo dispositivo da atual codificação traz a ideia de pessoa inserida no meio social, com a sua dignidade valorizada, à luz do que consta no Texto Maior, particularmente no seu art. 1.°, III, um dos ditames do Direito Civil Constitucional.
Por outra via, pelo que prescreve o aludido comando legal, não se pode mais afirmar que a pessoa é sujeito de direitos e obrigações, mas de direitos e deveres. A expressão destacada é melhor tecnicamente, pois existem deveres que não são obrigacionais, no sentido patrimonial, caso dos deveres do casamento (art. 1.566 do CC). No volume específico que trata do Direito das Obrigações é comentado esse tratamento legal, particularmente quando do estudo dos conceitos de obrigação, de dever, de responsabilidade, de ônus e de estado de sujeição (TARTUCE, Flávio. Direito civil..., 2014, v. 2).
O Código Civil de 2002, também ao contrário da codificação anterior, não traz mais uma disposição preliminar, cujo conteúdo era o principal objetivo da codificação, com a seguinte redação: “Este Código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações” (art. 1.° do CC/1916). Tal previsão está implícita no atual art. 1.° da atual norma geral privada, bem como nos princípios do atual Código Civil, analisados no capítulo anterior deste livro.
Observe-se que o conceito de pessoa natural exclui os animais, os seres inanimados e as entidades místicas e metafísicas, todos tidos, eventualmente, como objetos do direito.
Quanto à personalidade, essa pode ser conceituada como sendo a soma de caracteres corpóreos e incorpóreos da pessoa natural ou jurídica, ou seja, a soma de aptidões da pessoa. Assim, a personalidade pode ser entendida como aquilo que a pessoa é, tanto no plano corpóreo quanto no social. No Brasil, a personalidade jurídica plena inicia-se com o nascimento com vida, ainda que por poucos instantes. Não se exige, como em outras legislações, que o recém-nascido seja apto para a vida, conforme determina o Código Civil francês.
Pelo que consta no art. 2.° do CC/2002: “A personalidade civil da pessoa natural começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Em complemento, prevalece o entendimento pelo qual o nascimento com vida, para fins legais, independe do corte do cordão umbilical, conforme dispõe a Lei de Registros Públicos (art. 53, § 2.°, da Lei 6.015/1973).
Ao prever o tratamento do nascituro, conceituado como aquele que foi concebido, mas ainda não nasceu, o artigo do Código Civil em questão traz uma dúvida: seria o nascituro uma pessoa, teria ele personalidade?
Para César Fiúza “o legislador parece um tanto quanto pleonástico (...). Perdeu o legislador a oportunidade histórica de pôr fim à controvérsia entre natalistas e concepcionistas. Os natalistas entendem que a personalidade tem início com o nascimento com vida. Os concepcionistas defendem a tese de que a personalidade começa a partir da concepção. Qual seria a posição do Código Civil? Os natalistas propugnam por sua tese; afinal, esta seria a intenção literal do legislador, ao afirmar que a personalidade civil começa do nascimento com vida. Ocorre que, logo a seguir, o mesmo legislador dispõe que os direitos do nascituro serão postos a salvo. Direitos só detêm as pessoas, sendo assim, por interpretação lógica, o texto legal estaria adotando a tese concepcionista. O Código de 1916 já era dúbio. Faltou coragem ao legislador de 2002” (Código Civil anotado..., 2004, p. 24).
É de se concordar com as palavras do jurista mineiro, sendo certo que alguns doutrinadores sustentam que a teoria natalista ainda continua sendo a regra de nosso ordenamento jurídico. A questão não é pacífica e seria solucionada se o legislador tivesse adotado expressamente uma das duas teorias.
Visando a esclarecer o assunto, este autor escreveu artigo científico, intitulado A situação jurídica do nascituro: uma página a ser virada no Direito Brasileiro (Questões controvertidas..., 2007). Nesse trabalho de pesquisa, em que constam todas as referências bibliográficas, foram encontradas três correntes que procuraram justificar a situação do nascituro, que passam a ser expostas de forma pontual:
a) Teoria natalista
A teoria natalista prevalecia entre os autores modernos ou clássicos do Direito Civil Brasileiro, para quem o nascituro não poderia ser considerado pessoa, pois o Código Civil exigia e exige, para a personalidade civil, o nascimento com vida. Assim sendo, o nascituro não teria direitos, mas mera expectativa de direitos.
Como adeptos dessa corrente, da doutrina tradicional, podem ser citados Sílvio Rodrigues, Caio Mário da Silva Pereira e San Tiago Dantas. Na doutrina contemporânea, filia-se a essa corrente Sílvio de Salvo Venosa. Partem esses autores de uma interpretação literal e simplificada da lei, que dispõe que a personalidade jurídica começa com o nascimento com vida, o que traz a conclusão de que o nascituro não é pessoa, e ponto final.
O grande problema da teoria natalista é que ela não consegue responder à seguinte constatação e pergunta: se o nascituro não tem personalidade, não é pessoa; desse modo, o nascituro seria uma coisa? A resposta acaba sendo positiva a partir da primeira constatação de que haveria apenas expectativa de direitos.
Além disso, a teoria natalista está totalmente distante do surgimento das novas técnicas de reprodução assistida e da proteção dos direitos do embrião. Também está distante de uma proteção ampla de direitos da personalidade, tendência do Direito Civil pós-moderno.
Do ponto de vista prático, a teoria natalista nega ao nascituro mesmo os seus direitos fundamentais, relacionados com a sua personalidade, caso do direito à vida, à investigação de paternidade, aos alimentos, ao nome e até à imagem. Com essa negativa, a teoria natalista esbarra em dispositivos do Código Civil que consagram direitos àquele que foi concebido e não nasceu. Essa negativa de direitos é mais um argumento forte para sustentar a total superação dessa corrente doutrinária.
b) Teoria da personalidade condicional
A teoria da personalidade condicional é aquela pela qual a personalidade civil começa com o nascimento com vida, mas os direitos do nascituro estão sujeitos a uma condição suspensiva, ou seja, são direitos eventuais. Como se sabe, a condição suspensiva é o elemento acidental do negócio ou ato jurídico que subordina a sua eficácia a evento futuro e incerto. No caso, a condição é justamente o nascimento daquele que foi concebido. Como fundamento da tese e da existência de direitos sob condição suspensiva, pode ser citado o art. 130 do atual Código Civil.
Como entusiastas desse posicionamento cite-se Washington de Barros Monteiro, Miguel Maria de Serpa Lopes e Clóvis Beviláqua, supostamente. Diz-se supostamente quanto ao último jurista, pois, apesar de ter inserido tal teoria no Código Civil de 1916, afirmava que “parece mais lógico afirmar francamente, a personalidade do nascituro” (BEVILAQUA, Clóvis. Código..., v. I, 1940, p. 178). Na doutrina atual, Arnaldo Rizzardo segue o entendimento da teoria da personalidade condicional.
O grande problema dessa corrente doutrinária é que ela é apegada a questões patrimoniais, não respondendo ao apelo de direitos pessoais ou da personalidade a favor do nascituro. Ressalte-se, por oportuno, que os direitos da personalidade não podem estar sujeitos a condição, termo ou encargo, como propugna a corrente. Além disso, essa linha de entendimento acaba reconhecendo que o nascituro não tem direitos efetivos, mas apenas direitos eventuais sob condição suspensiva, ou seja, também mera expectativa de direitos.
Na verdade, com todo o respeito ao posicionamento em contrário, consideramos que a teoria da personalidade condicional é essencialmente natalista, pois também parte da premissa de que a personalidade tem início com o nascimento com vida. Por isso, em uma realidade que prega a personalização do Direito Civil, uma tese essencialmente patrimonialista não pode prevalecer.
c) Teoria concepcionista
A teoria concepcionista é aquela que sustenta que o nascituro é pessoa humana, tendo direitos resguardados pela lei. Esse é o entendimento defendido por Silmara Juny Chinellato, Pontes de Miranda, Rubens Limongi França, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Roberto Senise Lisboa, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Francisco Amaral, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Antonio Junqueira de Azevedo, Gustavo Rene Nicolau, Renan Lotufo e Maria Helena Diniz. Em sua obra sobre a Parte Geral do Código Civil de 2002, lançada no ano de 2012, o Mestre Álvaro Villaça Azevedo também expõe que o correto é sustentar que a personalidade é adquirida desde a concepção (Teoria..., 2012, p. 10).
A maioria dos autores citados aponta que a origem da teoria está no Esboço de Código Civil elaborado por Teixeira de Freitas, pela previsão constante do art. 1.° da sua Consolidação das Leis Civis, segundo a qual “As pessoas consideram-se como nascidas apenas formadas no ventre materno; a Lei lhes conserva seus direitos de sucessão ao tempo de nascimento”. Ao considerar como nascidas as pessoas concebidas, o Esboço de Teixeira de Freitas atribui direitos ao nascituro. Como é notório, esse Esboço inspirou o Código Civil argentino, que adota expressamente a teoria concepcionista.
Para todos esses autores, o nascituro tem direitos reconhecidos desde a concepção. Quanto à Professora Maria Helena Diniz, há que se fazer um aparte, pois alguns doutrinadores a colocam como seguidora da tese natalista, o que não é verdade. A renomada doutrinadora, em construção interessante, classifica a personalidade jurídica em formal e material. A personalidade jurídica formal é aquela relacionada com os direitos da personalidade, o que o nascituro já tem desde a concepção, enquanto a personalidade jurídica material mantém relação com os direitos patrimoniais, e o nascituro só a adquire com o nascimento com vida. Mais à frente, a jurista diz que a razão está com a teoria concepcionista, filiando-se a essa corrente (Código Civil..., 2005, p. 10).
Em complemento, cite-se outro trecho da obra da renomada jurista em que se confirma a tese nos seguintes termos:
“O embrião ou o nascituro têm resguardados, normativamente, desde a concepção, os seus direitos, porque a partir dela passa a ter existência e vida orgânica e biológica própria, independente da de sua mãe. Se as normas o protegem é porque tem personalidade jurídica. Na vida intrauterina, ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica formal, relativamente aos direitos da personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião em que será titular dos direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial por ele sofrido” (DINIZ, Maria Helena, O estado atual..., 2002, p. 113).
Em reforço, com a entrada em vigor da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) ganha força a teoria concepcionista, na visão do presente autor, diante da proibição da engenharia genética em embrião humano. Isso é apontado, mais uma vez, pela própria Maria Helena Diniz, “uma vez que o Código Civil resguarda desde a concepção os direitos do nascituro, e, além disso, no art. 1.597, IV, presume concebido na constância do casamento o filho havido, a qualquer tempo, quando se tratar de embrião excedente, decorrente de concepção artificial homóloga. Com isso, protegidos estão os direitos da personalidade do embrião, fertilizado in vitro, e do nascituro” (Código Civil anotado..., p. 10).
O art. 5.° da referida lei específica autoriza a utilização de células-tronco embrionárias para fins científicos e terapêuticos, desde que os embriões sejam considerados como inviáveis. Além dessa situação, é possível a utilização das células embrionárias nos casos de embriões congelados há três anos ou mais, na data da publicação da lei, ou já congelados na data da publicação da norma, depois de completarem três anos, contados a partir da data do congelamento. A lei exige autorização dos genitores do embrião, para que sejam utilizados para tais fins. Nota-se que ao embrião são reconhecidos pais, e não proprietários ou donos.
O que se nota, pelos múltiplos requisitos, é que essa utilização não traduz regra, mas exceção. Em suma, reconhece-se a integridade física do embrião, como direito da personalidade. Em maio de 2008, o Supremo Tribunal Federal discutiu a constitucionalidade do dispositivo, em ação declaratória de inconstitucionalidade proposta pela Procuradoria-Geral da República (ADIN 3510). Seguindo a relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, por maioria de votos prevaleceu o entendimento de sua constitucionalidade, autorizando a pesquisa com células-tronco em nosso País.
Pois bem, voltando às lições de Maria Helena Diniz, a jurista diferencia o nascituro (com vida intra uterina) do embrião (com vida ultra uterina), constando proposta de incluir o embrião no art. 2.° do CC/2002 pelo antigo PL 6.960/2002, atual PL 699/2011. Vale dizer que a alteração do número do PL se deu pelo fato de em 31.01.2007, o PL 6.960/2002 ter sido arquivado nos termos do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (“Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles”).
A proposta de alteração segue parecer da doutrinadora. De qualquer modo, há quem iguale as duas figuras jurídicas, não concordando com essa distinção (Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Silmara Juny Chinellato). A questão é realmente polêmica. De início, no que tange aos direitos da personalidade, ficamos com as duas professoras da USP por último citadas, afirmando que juridicamente não há distinção entre o nascituro e o embrião, estando o último também protegido pelo art. 2.° do CC/2002. Mas, do ponto de vista dos direitos patrimoniais, como no que concerne ao Direito das Sucessões, o tratamento pode ser diferenciado, pois nascituro e embrião não estão na mesma situação fática. A questão está aprofundada no Volume 6 da presente coleção.
No que concerne novamente ao art. 5.° da Lei de Biossegurança, apesar da nossa filiação à tese concepcionista, somos favoráveis à sua constitucionalidade. Primeiro, porque a lei acaba trazendo uma presunção de morte dos embriões, autorizando a utilização de suas células-tronco se eles forem inviáveis à reprodução. Segundo, porque a partir de uma ponderação de valores constitucionais, os interesses da coletividade quanto à utilização de células-tronco devem prevalecer sobre os interesses individuais relativos ao embrião. Ressalte-se que a utilização de células-tronco para fins de terapia representa uma chama de esperança para inúmeras pessoas que enfrentam doenças e problemas físicos. Em reforço, os critérios para a utilização das referidas células são rígidos, devendo ser respeitados, constituindo exceção.
Na verdade, parece mesmo inconcebível negar direitos da personalidade ao nascituro. Ciente disso, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o nascituro tem direito à indenização por danos morais pela morte de seu pai ocorrida antes do seu nascimento:
“Direito civil. Danos morais. Morte. Atropelamento. Composição férrea. Ação ajuizada 23 anos após o evento. Prescrição inexistente. Influência na quantificação do quantum. Precedentes da Turma. Nascituro. Direito aos danos morais. Doutrina. Atenuação. Fixação nesta instância. Possibilidade. Recurso parcialmente provido. I – Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum. II – O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum. III – Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional” (STJ, REsp 399.028/SP, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 26.02.2002, DJ 15.04.2002 p. 232).
Anote-se que tal entendimento é confirmado por outros arestos mais recentes da mesma Corte Superior, que confirmam a teoria concepcionista (por todos: STJ, AgRg no AgRg no AREsp 150.297/DF, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, j. 19.02.2013, DJe 07.05.2013). Na mesma esteira, decisio do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que afirma, categoricamente, que o CC/2002 adotou a teoria concepcionista (TJDF, Recurso 2005.01.1.106085-3, Acórdão 431.797, Segunda Turma Cível, Rel. Des. J. J. Costa Carvalho, DJDFTE 13.07.2010, p. 143).
Igualmente adotando a teoria concepcionista – apesar de confusões no corpo do julgado –, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que cabe pagamento de indenização do seguro obrigatório por acidente de trânsito (DPVAT) pela morte do nascituro. Como se percebe, o feto foi tratado pelo acórdão como pessoa humana, o que é merecedor de elogios:
“Recurso Especial. Direito securitário. Seguro DPVAT. Atropelamento de mulher grávida. Morte do feto. Direito à indenização. Interpretação da Lei n.° 6194/74. 1 – Atropelamento de mulher grávida, quando trafegava de bicicleta por via pública, acarretando a morte do feto quatro dias depois com trinta e cinco semanas de gestação. 2 – Reconhecimento do direito dos pais de receberem a indenização por danos pessoais, prevista na legislação regulamentadora do seguro DPVAT, em face da morte do feto. 3 – Proteção conferida pelo sistema jurídico à vida intrauterina, desde a concepção, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana. 4 – Interpretação sistemático-teleológica do conceito de danos pessoais previsto na Lei n° 6.194/74 (arts. 3.° e 4.°). 5 – Recurso especial provido, vencido o relator, julgando-se procedente o pedido” (STJ, REsp 1.120.676/SC, Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, j. 07.12.2010, DJe 04.02.2011).
Seguindo no estudo a respeito do nascituro, cabe ainda debater se ele tem também os direitos patrimoniais. Nas edições anteriores desta obra, o presente autor seguia o entendimento ainda majoritário, no sentido de lhe faltar a personalidade jurídica material, o que pode ser observado pelo que consta do art. 542 do CC, pelo qual é possível a doação a nascituro. Percorrendo tal caminho, trata-se de uma doação condicional, que depende de um evento futuro e incerto, qual seja, o nascimento com vida da prole. Porém, este autor tende a mudar sua opinião, a fim de afirmar que o nascituro também tem direitos patrimoniais desde a concepção, assunto que está aprofundado no Volume 6 desta coleção.
Por tudo o que foi aqui exposto e também naquele artigo científico, não há dúvidas em afirmar que, na doutrina civilista atual brasileira, prevalece o entendimento de que o nascituro é pessoa humana, ou seja, que ele tem direitos reconhecidos em lei, principalmente os direitos existenciais de personalidade. Em suma, prevalece, pelos inúmeros autores citados, a teoria concepcionista. As páginas que devem ser viradas são justamente aquelas que defendem as outras teses.
A teoria concepcionista ganhou reforço com a entrada em vigor no Brasil da Lei 11.804, de 5 de novembro de 2008, conhecida como Lei dos Alimentos Gravídicos, disciplinando o direito de alimentos da mulher gestante (art. 1.°). Os citados alimentos gravídicos, nos termos da lei, devem compreender os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes à alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere como pertinentes (art. 2.°).
Em verdade, a norma emergente em nada inova, diante dos vários julgados que deferiam alimentos durante a gravidez ao nascituro. Entre as várias ementas, pode ser transcrita a seguinte, do Tribunal Mineiro:
“Direito civil. Alimentos. Provisórios. Redução. Inconveniência. Profissional liberal. Dificuldade na produção de prova robusta. Credora que aguarda nascimento do filho do devedor. Necessidade de assegurar conforto à mãe e ao nascituro. Tratando-se de profissional liberal, não se há exigir a produção de prova robusta a alicerçar a fixação dos alimentos sob pena de se inviabilizar o seu recebimento por aquele que deles necessita, isentando o devedor da obrigação que o ordenamento jurídico lhe impõe. A credora dos alimentos, que aguarda o nascimento de uma criança, filha do devedor, precisa de um mínimo de conforto material para que sua saúde e a do nascituro não sejam comprometidas. Logo, reduzir a verba alimentar que, em princípio, não se apresenta elevada, é colocar em risco a vida de duas pessoas. Nega-se provimento ao recurso” (TJMG, Agravo 1.0000.00.207040-7/000, Araxá, 4.ª Câmara Cível, Rel. Des. Almeida Melo, j. 1.°.03.2001, DJMG 05.04.2001).
Destacam-se, igualmente, as manifestações doutrinárias de tutela dos direitos do nascituro, como é o caso da pioneira Silmara Juny Chinellato (CHINELLATO, Silmara J. A tutela..., 2001). Em obra mais atual, a Professora Titular da Universidade de São Paulo, uma das maiores especialistas no assunto em língua portuguesa, critica a criação do neologismo alimentos gravídicos, merecendo destaque as suas palavras para as devidas reflexões:
“A recente Lei n. 11.804, de 5 de novembro de 2008, que trata dos impropriamente denominados ‘alimentos gravídicos’ – desnecessário e inaceitável neologismo, pois alimentos são fixados para uma pessoa e não para um estado biológico da mulher – desconhece que o titular do direito a alimentos é o nascituro, e não a mãe, partindo de premissa errada, o que repercute no teor da lei” (CHINELLATO, Silmara Juny (Coord.). Código Civil..., 2009, p. 29).
Tem razão a jurista, uma vez que a norma novel despreza toda a evolução científica e doutrinária no sentido de reconhecer os direitos do nascituro, principalmente aqueles de natureza existencial, fundados na sua personalidade. Desse modo, seria melhor que a lei fosse denominada lei dos alimentos do nascituro, ou algo próximo.
Por tudo o que foi exposto a respeito do nascituro, eventuais questões de provas ou de concurso que não tragam esse reconhecimento estão na contramão da evolução da doutrina brasileira. A crítica já é preliminar: cabe anulação dessas eventuais questões que adotam aquelas teorias superadas.
Consigne-se que a conclusão pela corrente concepcionista consta do Enunciado n. 1, do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), aprovado na I Jornada de Direito Civil, e que também consagra direitos ao natimorto, cujo teor segue: “art. 2.° a proteção que o Código defere ao nascituro alcança também o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e sepultura”.
Quanto ao fim da personalidade, sabe-se que este ocorre com a morte, que será estudada oportunamente.
Superada a análise da situação jurídica do nascituro, é interessante lembrar que, quando se estuda a pessoa natural, um dos preceitos básicos mais importantes é o relacionado com a sua capacidade, conceituada em sentido amplo, como sendo a aptidão da pessoa para exercer direitos e assumir deveres na órbita civil (art. 1.° do CC).
A capacidade, que é elemento da personalidade, é a “medida jurídica da personalidade” (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2002, v. I, p. 135). Ou ainda, como bem afirma Silmara Chinellato, “a personalidade é um quid (substância, essência) e a capacidade um quantum” (CHINELLATO, Silmara Juny (coord.). Código Civil..., 3. ed., 2010. p. 27).
A capacidade civil, em sentido genérico, pode ser assim classificada:
• Capacidade de direito ou de gozo – é aquela comum a toda pessoa humana, inerente à personalidade, e que só se perde com a morte prevista no texto legal, no sentido de que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1.° do CC).
• Capacidade de fato ou de exercício – é aquela relacionada com o exercício próprio dos atos da vida civil.
Toda pessoa tem capacidade de direito, mas não necessariamente a capacidade de fato, pois pode lhe faltar a consciência sã para o exercício dos atos de natureza privada. Desse modo, a capacidade de direito não pode, de maneira alguma, ser negada a qualquer pessoa, podendo somente sofrer restrições quanto ao seu exercício. Assim sendo, “A incapacidade consiste na restrição legal ao exercício dos atos da vida civil, devendo ser sempre encarada estritamente, considerando-se o princípio de que ‘a capacidade é a regra e a incapacidade a exceção’” (DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., p. 12).
Quem tem as duas espécies de capacidade tem a capacidade civil plena. Quem só tem a capacidade de direito, tem capacidade limitada, devendo ser visualizada a fórmula abaixo:
Capacidade de Direito + Capacidade de Fato = Capacidade Civil Plena
É interessante deixar claro que não se pode confundir capacidade com legitimação e legitimidade.
A legitimação é uma condição especial para celebrar um determinado ato ou negócio jurídico. A título de exemplo, determina o art. 1.647 da atual codificação que, para determinados atos (vender imóvel, fazer doação, prestar fiança e aval), se casado for o celebrante, é necessária a autorização do cônjuge, a outorga conjugal (uxória – da mulher; ou marital – do marido). Não havendo respeito a essa legitimação, o negócio é anulável, desde que proposta ação pelo cônjuge, no prazo decadencial de 2 (dois) anos, contados do fim da sociedade conjugal (art. 1.649 do CC). Outro exemplo de legitimação que pode ser citado consta do art. 496 do CC, que consagra a anulabilidade da venda de ascendente a descendente, se não houver autorização dos demais descendentes e do cônjuge do alienante. Ilustrando, podem ser citados ainda os impedimentos matrimoniais, previstos no art. 1.521 do CC, que envolvem a legitimação para o casamento.
No que tange à legitimidade, esta interessa ao direito processual civil, sendo uma das condições da ação. Não havendo legitimidade para ser autor ou réu de uma demanda – legitimidade ativa e passiva, respectivamente –, deverá a ação ser julgada extinta sem a resolução do mérito, nos termos do art. 267, VI, do CPC. A mesma lei processual aponta em seu art. 3.° que para propor ou contestar ação é preciso ter interesse e legitimidade, que são condições da ação.
Muitas vezes, contudo, as palavras legitimidade e legitimação são utilizadas como sinônimas, o que não acarreta maiores prejuízos. A título de exemplo, percebe-se que o art. 12, parágrafo único, do CC/2002 utiliza a expressão legitimação, quando o certo seria falar em legitimidade, pois as medidas ali mencionadas são essencialmente processuais.
Superada essa análise inicial, passa-se então a estudar o rol dos incapazes, aqueles que não possuem a capacidade de fato, previsto nos arts. 3.° e 4.° do Código Civil em vigor.
O rol taxativo dos absolutamente incapazes, constante no art. 3.° do CC/2002, envolve situações em que há proibição total para o exercício de direitos por parte da pessoa natural, o que pode acarretar, ocorrendo violação à regra, a nulidade absoluta do negócio jurídico eventualmente celebrado, conforme o art. 166, I, do mesmo diploma.
Os absolutamente incapazes possuem direitos, porém não podem exercê-los pessoalmente, devendo ser representados.
São absolutamente incapazes três personagens jurídicos, previstos no art. 3.° do CC, a saber:
a) Os menores de 16 (dezesseis) anos.
Nessa previsão é levado em conta o critério etário, devendo esses menores, denominados menores impúberes, ser representados por seus pais ou, na falta deles, por tutores nomeados. Aqui não houve qualquer inovação com a codificação emergente, entendendo o legislador que, devido a essa idade, a pessoa ainda não atingiu o discernimento para distinguir o que pode ou não pode fazer na ordem privada.
Eventualmente, o ato praticado pelo menor absolutamente incapaz pode gerar efeitos. Esse é o teor do Enunciado n. 138 do CJF/STJ, aprovado na III Jornada de Direito Civil: “A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3.°, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento suficiente para tanto”. Pelo enunciado doutrinário, um contrato celebrado por menor impúbere, de compra de um determinado bem de consumo, pode ser reputado válido, principalmente se houver boa-fé dos envolvidos. Além disso, a vontade dos menores nessas condições é relevante para os casos envolvendo a adoção e a guarda de filhos, devendo eles opinar. Especificamente no tocante à adoção da pessoa com idade superior a doze anos, esta deverá manifestar sua concordância, conforme o art. 45, § 2.°, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990).
b) Pessoas que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil.
O comando legal em questão (art. 3.°, II, do CC) trata das pessoas que padeçam de doença ou deficiência mental, congênita ou adquirida em vida de caráter duradouro e permanente, e que não estão em condições de administrar seus bens ou praticar atos jurídicos de qualquer espécie. Por oportuno, nosso ordenamento não admite os chamados intervalos lúcidos, pelo fato de a incapacidade mental estar revestida desse caráter permanente.
Pois bem, para que seja declarada a incapacidade absoluta, em casos tais, é necessário um processo próprio de interdição – de natureza declaratória e cuja sentença deve ser registrada no Registro Civil da Comarca em que residir o interdito –, previsto entre os arts. 1.177 e 1.186 do CPC. Anote-se que a velhice ou senilidade, por si só, não é causa de restrição da capacidade de fato, podendo ocorrer interdição em hipótese que a senectude originar de um estado patológico (TJMG, Acórdão 1.0701.00.006030-4/001, Uberaba, 2.ª Câmara Cível, Rel. Des. Francisco de Assis Figueiredo, j. 1.°.06.2004, DJMG 25.06.2004). Por isso é correto afirmar que a incapacidade por deficiência mental não se presume.
O legislador da atual codificação entendeu que a expressão loucos de todos os gêneros, contida no Código de 1916, era discriminatória e violadora da dignidade humana, razão dessa alteração constante no art. 3.°, II, do CC. Entretanto, deve-se compreender que as duas expressões exprimem basicamente a mesma situação.
c) Pessoas que, mesmo por causa transitória, não puderam exprimir sua vontade.
O art. 3.°, III, do atual Código Civil traz uma expressão ampla, que aumenta as hipóteses de incapacidade absoluta, incluindo também o surdo-mudo que não pode manifestar sua vontade, que constava na codificação anterior. Todavia, se o surdo-mudo puder exprimir sua vontade, será considerado relativamente incapaz ou até plenamente capaz, dependendo do grau de possibilidade de sua expressão. Entendemos que a hipótese que consta do art. 3.°, III, inclui ainda pessoas que perderam a memória, bem como aqueles que estão em coma. Quanto aos ébrios habituais e os viciados em tóxicos, será visto que são considerados relativamente incapazes, mas, dependendo da situação em que se encontrarem, poderão ser tidos como absolutamente incapazes.
Interessante, outrossim, verificar que não deve mais ser considerado incapaz o ausente, como fazia a codificação anterior. Não há incapacidade por ausência, mas sim verdadeira inexistência da pessoa natural, por morte presumida. Conforme lembram Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho havia um grande equívoco na codificação anterior, eis que não existia incapacidade por ausência, mas sim uma premência em proteger os interesses do ausente, devido à sua impossibilidade material de cuidar de seus bens e interesses e à incompatibilidade jurídica de conciliar o abandono do domicílio com a conservação de direitos (Novo..., 2003, v. I, p. 135).
Superada a análise das hipóteses de incapacidade absoluta, parte-se ao estudo da incapacidade relativa.
Confrontada com a incapacidade absoluta, a incapacidade relativa diz respeito àqueles que podem praticar os atos da vida civil, desde que haja assistência. O efeito da violação desta norma é gerar a anulabilidade ou nulidade relativa do negócio jurídico celebrado, isso dependente de eventual iniciativa do lesado (art. 171, I, do CC). Em havendo incapacidade relativa, o negócio somente será anulado se proposta ação pelo interessado no prazo de 4 (quatro) anos, contados de quando cessar a incapacidade (art. 178 do CC).
São relativamente incapazes quatro personagens jurídicos, previstos no art. 4.° do CC, a saber:
a) Maiores de 16 anos e menores de 18 anos.
Percebe-se que a alteração substancial trazida pela atual codificação foi a de reduzir a idade para se atingir a maioridade civil, de 21 para 18 anos. Levando-se em conta a idade etária, esses menores são denominados menores púberes e somente poderão praticar certos atos se assistidos. No entanto, há atos que os menores relativamente incapazes podem praticar, mesmo sem a assistência, como se casar, necessitando apenas de autorização dos pais ou representantes; elaborar testamento; servir como testemunha de atos e negócios jurídicos; requerer registro de seu nascimento; ser empresário, com autorização; ser eleitor; ser mandatário ad negotia (mandato extrajudicial). Mais à frente serão estudados os casos de emancipação, situações em que a capacidade é antecipada. Em complemento, quanto aos menores púberes, vale citar dois dispositivos do Código Civil. O primeiro é o art. 180, pelo qual “o menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”. O outro é o art. 181 do CC/2002, in verbis: “ninguém pode reclamar o que, por uma obrigação anulada, pagou a um incapaz, se não provar que reverteu em proveito dele a importância paga”.
b) Os ébrios habituais (aqueles que têm a embriaguez como hábito, no sentido de ser um alcoólatra), os toxicômanos (viciados em tóxicos), e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido.
Observe-se que três são as hipóteses constantes nesse inciso. A previsão do art. 4.°, II, do atual Código Privado constitui novidade importante, pela qual se ampliam os casos de incapacidade relativa decorrente de causa permanente ou transitória. Aqui também deverá haver um processo próprio de interdição relativa, cabendo análise caso a caso da situação de incapacidade, se presente ou não. A respeito da situação do ébrio habitual, ilustre-se com decisão do Tribunal de Minas Gerais:
“Incapacidade relativa. Necessidade de comprovação da embriaguez habitual do vendedor. Desnecessidade de registro da promessa de compra e venda. Testemunhas não presentes quando da assinatura do contrato. Irrelevância. Acusações levianas. Dano moral configurado. A amizade da testemunha com a parte somente a torna suspeita para depor se se tratar de amizade íntima, entendida como aquela muito próxima, com laços de afinidade profundos. O vício de consumo de álcool implica incapacidade relativa da pessoa se a transforma em ébrio habitual, aquele que, pelo uso constante da bebida, tem seu discernimento permanentemente afetado pela embriaguez. Incomprovada a embriaguez habitual da pessoa e inexistindo interdição judicial, não se configura incapacidade. (...). Agravo retido e apelação não providos” (TJMG, Apelação Cível 0540383-93.2008.8.13.0470, Paracatu, 10.ª Câmara Cível, Rel. Des. Mota e Silva, j. 26.10.2010, DJEMG 17.11.2010).
Eventualmente, dependendo do teor do laudo médico, as pessoas elencadas podem ser enquadradas como absolutamente incapazes, em particular nos incisos II e III do art. 3.° do CC. Exemplificando, um ébrio habitual que esteja em coma por grande lapso temporal será absolutamente incapaz. Em síntese, nem sempre tais pessoas serão relativamente incapazes.
c) Os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo.
O art. 4.°, III, do CC/2002 abrange os portadores de síndrome de Down, e outros portadores de anomalias psíquicas que apresentem sinais de desenvolvimento mental incompleto. Compreendemos que não havia a necessidade dessa previsão, eis que o inciso anterior já trata das pessoas com deficiência mental. A qualificação que consta nesse dispositivo depende de regular processo de interdição, podendo o excepcional ser também enquadrado como absolutamente incapaz (TJSP, Apelação com revisão 577.725.4/7, Acórdão 3310051, Limeira, 2.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Morato de Andrade, j. 21.10.2008, DJESP 10.12.2008). Destaque-se que o portador da síndrome de Down pode ser ainda plenamente capaz, o que depende da sua situação.
Relativamente aos surdos-mudos que não receberam educação adequada para a comunicação, e que consequentemente não podem exprimir sua vontade com exatidão, podem ser tidos também como relativamente incapazes (art. 4.°, III, do CC), tese defendida por Carlos Roberto Gonçalves (Direito civil brasileiro..., 2003, v. I, p. 93). Eventualmente, há também como enquadrá-los como pessoas com discernimento mental reduzido, sendo esta, para o presente autor, a melhor opção de enquadramento (art. 4.°, II, do CC).
d) Os pródigos.
São aquelas pessoas que dissipam de forma desordenada e desregrada os seus bens ou seu patrimônio, realizando gastos desnecessários e excessivos, sendo seu exemplo típico a pessoa viciada em jogatinas.
Os pródigos devem ser interditados, com a nomeação de um curador, ficando privados dos atos que possam comprometer o seu patrimônio, tais como emprestar dinheiro, transigir, dar quitação, alienar bens, hipotecar ou agir em juízo (art. 1.782 do CC). Todavia, poderá o pródigo exercer atos que não envolvam a administração direta de seus bens, como se casar ou exercer profissão. Ao contrário do que se possa pensar, não é imposto ao pródigo que se casa o regime da separação total de bens de origem legal ou obrigatória, pois ele não consta no art. 1.641 do CC, que traz rol taxativo ou numerus clausus de hipóteses que restringem a liberdade da pessoa.
Sobre os índios ou silvícolas, o Código Civil de 2002 não os considera mais como incapazes, devendo a questão ser regida por lei especial (art. 4.°, parágrafo único, do CC atual). A Lei 6.001/1973 (Estatuto do Índio) coloca o silvícola e sua comunidade, enquanto não integrados à comunhão nacional, sob o regime tutelar, devendo a assistência ser exercida pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio). De acordo com os ensinamentos de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “a constante inserção social do índio na sociedade brasileira, com a consequente absorção de valores e hábitos (nem sempre sadios) da civilização ocidental, justifica a sua exclusão, no novo Código Civil, do rol de agentes relativamente incapazes” (Novo..., 2003, v. I, p. 105).
Ainda no que tange ao sistema de incapacidades adotado pelo Código Civil é de se anotar a crítica contundente formulada por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, no sentido de que “detecta-se uma disparidade injustificável, verdadeiro despautério jurídico. Afastar um sujeito da titularidade de seus direitos, obstando-lhe a prática de quaisquer atos da vida civil, concedendo-lhe tutela tão somente aos interesses patrimoniais, a ser efetivada por intermédio de terceiros (o representante legal), relegando a segundo plano os seus interesses existenciais. Daí a necessidade premente de dedicar-se a proteção jurídica à pessoa humana sob a perspectiva do que ela é, e não pela ótica do que ela tem” (Direito civil. Teoria geral..., p. 198). Essa crítica procede, adaptada que está à concepção civil-constitucional do Direito Privado e à constante personalização do Direito Civil, escola a que também se filiam os professores citados.
A incapacidade termina, via de regra, ao desaparecerem as causas que a determinaram. A título de exemplo, nos casos de loucura, cessando a enfermidade que a gerou, cessa também a incapacidade civil. Em relação à menoridade, a incapacidade cessa quando o menor completar 18 anos. Dessa forma, torna-se apto a exercer pessoalmente todos os atos da vida civil sem necessidade de ser assistido por seus pais ou tutores. Entretanto, quanto aos menores, a cessação da incapacidade também pode se dar com a emancipação, que merecerá um estudo específico.
Por fim, anote-se que as incapacidades absoluta e relativa do menor são supridas pela representação e pela assistência, respectivamente, conforme prevê o art. 1.634, V, do CC/2002.
O Código Civil de 2002, ao contrário da codificação anterior, traz um capítulo específico a tratar da representação, concebendo uma teoria geral quanto à matéria. Esse tópico está inserido no tratamento do negócio jurídico (arts. 115 a 120), mas, para fins didáticos, ele será estudado na presente seção.
Esses arts. 115 a 120 do CC disciplinam, na realidade, o poder de representação, que pode ser conceituado como sendo o poder de agir em nome de outrem. Esse atributo só existe quando o ordenamento jurídico expressamente o assegura, razão pela qual é oportuno e conveniente o estabelecimento de regras gerais sobre a matéria.
Como todas as regras que integram a Parte Geral da codificação, esses dispositivos terão aplicação em todos os livros da Parte Especial, sempre que casuisticamente estivermos tratando de representação, em qualquer uma das suas formas. Apesar dessa conclusão, esclarece Gustavo Tepedino que “a existência de um capítulo dedicado à representação permite concluir que a representação voluntária e o mandato constituem-se em institutos completamente distintos. De mais a mais, ‘o que se remete para a Parte Especial não é o instituto da representação voluntária como um todo ou mesmo a sua forma, mas tão somente os seus requisitos e os seus efeitos, de tal modo que nada no sistema do novo Código Civil impede que o intérprete extraia a essência da representação voluntária de dentro da disciplina do mandato e a utilize em outras espécies contratuais, previstas ou não pelo legislador de 2002’” (A técnica de representação..., 2006, p. 79).
Iniciando-se o estudo da teoria geral da representação, pelo art. 115 do CC/2002, os poderes de representação conferem-se por lei ou pelo interessado. No primeiro caso haverá a denominada representação legal, no segundo, a convencional ou voluntária. Essas expressões também são utilizadas para a classificação do mandato. Eventualmente, caso a nomeação se dê em ação judicial, por determinação do juiz, tem-se a representação judicial, que pode assumir tanto uma quanto outra forma.
De acordo com o art. 116 do CC, a manifestação de vontade pelo representante, nos limites de seus poderes, produz efeitos em relação ao representado. Regra semelhante existe para o mandato, bem como para outros contratos em que age em nome de outrem, sendo certo que o instrumento negocial delimita essa atuação nos casos de representação voluntária. Essa atuação do representante acaba por vincular, em regra, o representado, em nome de quem se atua.
Enuncia o interessante art. 117 do CC que “Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo”, o denominado autocontrato. Para tais efeitos, tem-se como celebrado pelo representante o negócio realizado por aquele em quem os poderes houverem sido substabelecidos, conforme o parágrafo único do dispositivo.
O dispositivo legal em questão, novidade da atual codificação, acaba por permitir o mandato em causa própria (mandato in rem propriam ou in rem suam). Em casos tais, o mandante outorga poderes para o mandatário, constando a autorização para que o último realize o negócio consigo mesmo. Ilustrando, alguém outorga poderes para que um mandatário venda um imóvel, constando autorização para que o próprio mandatário seja o comprador.
Comentando o dispositivo, elucida Gustavo Tepedino que “o art. 117 do Código Civil de 2002, em seu caput, prevê o autocontrato com causa objetiva de anulabilidade do negócio, estabelecendo uma presunção de conflito de interesses. O dispositivo ressalva somente duas hipóteses em que será válido o negócio jurídico celebrado pelo representante consigo mesmo, a saber, a permissão da lei ou aquiescência específica do representado. Nada disto, porém, exclui a possibilidade de demonstração concreta de um conflito de interesses na celebração do autocontrato, sobretudo naquelas hipóteses em que a relação entre as partes não é paritária” (A técnica de representação..., 2006, p. 77).
Conforme está no volume específico dos contratos (Volume 3), este autor entende que não há no mandato em causa própria uma autocontratação perfeita, pois a alteridade está presente na outorga de poderes. Para esse volume remete-se aquele que queira se aprofundar quanto ao tema (TARTUCE, Flávio. Direito civil..., 2014, v. 3).
Como não há prazo fixado em lei para o ingresso da ação anulatória, não havendo a referida autorização, deve ser aplicado o art. 179 do CC, ou seja, a ação correspondente deve ser proposta no prazo decadencial de dois anos, contados da celebração ou conclusão do negócio.
De acordo com o art. 118 da codificação privada, o representante é obrigado a provar às pessoas com quem tratar em nome do representado a sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo, responder pelos atos que a estes excederem. Esse dispositivo consagra a responsabilidade do representante em relação a terceiros e equivale parcialmente ao art. 1.305 do CC/1916, que previa regra semelhante para o mandato (“O mandatário é obrigado a apresentar o instrumento do mandato às pessoas, com que tratar em nome do mandante, sob pena de responder a elas por qualquer ato, que lhe exceda os poderes”). O atual comando legal traz, ainda, como conteúdo, a boa-fé objetiva e a valorização da eticidade, presentes na conduta exigida em relação ao representante.
O art. 119 do CC/2002 regula mais um caso de anulabilidade, do negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou. O parágrafo único da norma consagra prazo decadencial específico para o ingresso da ação anulatória, de cento e oitenta dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade. Na linha do que lecionam Jones Alves Figueirêdo e Mário Luiz Delgado, opinamos que o conflito de interesses entre representante e representado pode decorrer da falta ou do abuso no poder na representação (Código Civil anotado..., 2005, p. 87). Para Gustavo Tepedino, trata-se de causa subjetiva de anulabilidade, conjugando-se a existência do conflito de interesses com o fato de o terceiro ter ou não dever ter conhecimento de tal conflito (A técnica de representação..., 2006, p. 77).
Encerrando essa teoria geral da representação, enuncia o art. 120 do Código de 2002 que os requisitos e os efeitos da representação legal são os estabelecidos nas normas anteriores, enquanto os da representação voluntária ou convencional são os da parte especial.
A emancipação pode ser conceituada como sendo o ato jurídico que antecipa os efeitos da aquisição da maioridade, e da consequente capacidade civil plena, para data anterior àquela em que o menor atinge a idade de 18 anos, para fins civis. Com a emancipação, o menor deixa de ser incapaz e passa a ser capaz para os limites do Direito Privado. Deve ser esclarecido, contudo, que ele não deixa de ser menor.
Tanto isso é verdade que, conforme o Enunciado n. 530, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, evento realizado em 2013, “A emancipação, por si só, não elide a incidência do Estatuto da Criança e do Adolescente”. Sendo assim, a título de exemplo, um menor emancipado não pode tirar carteira de motorista, entrar em locais proibidos para crianças e adolescentes ou ingerir bebidas alcoólicas. Tais restrições existem diante de consequências que surgem no campo penal, e a emancipação somente envolve fins civis ou privados.
A emancipação, regra geral, é definitiva, irretratável e irrevogável. De toda sorte, conforme se depreende de enunciado aprovado na V Jornada de Direito Civil, de novembro de 2011, a emancipação por concessão dos pais ou por sentença do juiz está sujeita a desconstituição por vício de vontade (Enunciado n. 397). Desse modo, é possível a sua anulação por erro ou dolo, por exemplo.
Trata-se, geralmente, de ato formal e solene, eis que o Código Civil de 2002 passou a exigir instrumento público, como regra, sendo certo que a codificação anterior possibilitava a emancipação por instrumento particular.
De acordo com o Código Civil, a emancipação poderá ocorrer nas seguintes situações (art. 5.°, parágrafo único) – rol esse que é taxativo (numerus clausus):
a) Emancipação voluntária parental – por concessão de ambos os pais ou de um deles na falta do outro. Em casos tais, não é necessária a homologação perante o juiz, eis que é concedida por instrumento público e registrada no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Para que ocorra a emancipação parental, o menor deve ter, no mínimo, 16 anos completos.
b) Emancipação judicial – por sentença do juiz, em casos, por exemplo, em que um dos pais não concordar com a emancipação, contrariando um a vontade do outro. A decisão judicial, por razões óbvias, afasta a necessidade de escritura pública. Tanto a emancipação voluntária quanto a judicial devem ser registradas no Registro Civil das pessoas naturais, sob pena de não produzirem efeitos (art. 107, § 1.°, da Lei 6.015/1973 – LRP). A emancipação legal, por outro lado, produz efeitos independentemente desse registro, conforme aponta a doutrina (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2007, p. 194; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil..., 2007, p. 110).
c) Emancipação legal matrimonial – pelo casamento do menor. Consigne-se que a idade núbil tanto do homem quanto da mulher é de 16 anos (art. 1.517 do CC), sendo possível o casamento do menor se houver autorização dos pais ou dos seus representantes. O divórcio, a viuvez e a anulação do casamento não implicam no retorno à incapacidade. No entanto, entende parte da doutrina que o casamento nulo faz com que se retorne à situação de incapaz, sendo revogável em casos tais a emancipação, o mesmo sendo dito quanto à inexistência do casamento. Para outra corrente, como no caso de Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, tratando-se de nulidade e de anulabilidade do casamento, a emancipação persiste apenas se o matrimônio for contraído de boa-fé (hipótese de casamento putativo). Em situação contrária, retorna-se à incapacidade (Novo..., 2003, v. I, p. 113). As duas correntes estão muito bem fundamentadas. A última delas segue o entendimento de que o ato anulável também tem efeitos retroativos (ex tunc), conforme será abordado mais adiante e com o qual se concorda.
d) Emancipação legal, por exercício de emprego público efetivo – segundo a doutrina, a regra deve ser interpretada a incluir todos os casos envolvendo cargos ou empregos públicos, desde que haja nomeação de forma definitiva (DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado..., 2005, p. 21). Estão afastadas, assim, as hipóteses de serviços temporários ou de cargos comissionados.
e) Emancipação legal, por colação de grau em curso de ensino superior reconhecido – para tanto, deve ser o curso superior reconhecido, não sendo aplicável à regra para o curso de magistério, antigo curso normal. A presente situação torna-se cada vez mais difícil de ocorrer na prática.
f) Emancipação legal, por estabelecimento civil ou comercial ou pela existência de relação de emprego, obtendo o menor as suas economias próprias, visando a sua subsistência – necessário que o menor tenha ao menos 16 anos, revelando amadurecimento e experiência desenvolvida. No entanto, na prática, há dificuldade para se provar tal economia própria.
Em relação a essa última hipótese (art. 5.°, parágrafo único, V) e que constitui novidade, é preciso aprofundar, por importante diálogo que surge com o Direito do Trabalho.
Para definir o que seja economia própria, José Affonso Dallegrave Neto aponta que “há que se apoiar em critério jurídico objetivo, qual seja o art. 7.°, IV, da CF, que estabelece o salário mínimo como sendo capaz de atender à subsistência do trabalhador e de sua família” (Nulidade..., O impacto..., 2003, p. 111). O critério legal pode parecer fantasioso, mas é o único existente, devendo ser seguido.
Mais especificamente, ensinam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho que parece “razoável afirmar que as normas da Consolidação das Leis do Trabalho e leis extravagantes anteriores à edição do CC/2002, que limitam a manifestação de vontade do menor entre dezesseis e dezoito anos, estejam tacitamente revogadas, uma vez que seria um contrassenso imaginar que tal trabalhador teria alcançado a maioridade civil – que lhe autoriza praticar todos os atos jurídicos no meio social – mas não possa firmar, por exemplo, um Termo de Rescisão de Contrato de Trabalho” (Novo..., 2003, v. I, p. 117).
Os doutrinadores referem-se, inicialmente, ao art. 439 da CLT segundo o qual “é lícito ao menor firmar recibo pelo pagamento de salário. Tratando-se, porém, de rescisão do contrato de trabalho, é vedado ao menor de 18 (dezoito) anos dar, sem assistência dos seus responsáveis legais, a quitação ao empregador pelo recebimento da indenização que lhe for devida”. Ainda podem ser mencionados o art. 408 da CLT, que permite a rescisão do contrato de trabalho pelo responsável do menor em caso de prejuízos morais ou físicos ao mesmo ; e o art. 424 da CLT, que determina o afastamento do menor quando houver redução do seu tempo de repouso ou de estudos, decisão esta que cabe aos seus responsáveis.
Entretanto, outra corrente entende de forma diferente.
José Affonso Dallegrave Neto opina que os referidos artigos da CLT não foram revogados ou atingidos pelo Código Civil de 2002. Primeiro, porque o Direito Civil somente deve ser considerado fonte subsidiária do Direito do Trabalho (art. 8.° da CLT). Segundo, porque os dispositivos da CLT visam à tutela do empregado menor, conforme ordena a Constituição em seu art. 227. Terceiro, porque o art. 5.°, parágrafo único, V, do CC “contempla uma situação jurídica trabalhista que irradia efeitos apenas para os atos civis” (Nulidade..., O impacto..., 2003, p. 112).
Pois bem, utilizando-se a tese do diálogo das fontes, é possível conciliar as duas leis (CC e CLT) na questão que envolve o menor empregado. Em suma, é possível um diálogo de complementaridade entre as duas normas.
Por regra, continua sendo exigida a atuação do representante para firmar recibo pelo menor, aplicando-se também os arts. 408 e 424 da CLT. Essa necessidade de atuação é descartada somente nos casos em que o menor for emancipado, diante do fato de obter economias próprias para a sua subsistência decorrentes do seu trabalho. Quanto aos dois dispositivos citados que visam a proteger o menor empregado, continuam em vigor diante da tutela do vulnerável que consta do Texto Maior (critério hierárquico).
Seguindo em parte essa tentativa de diálogo, mencione-se o teor da Portaria MTE/SRT n. 1, de 25 de maio de 2006, da Secretaria de Relações do Trabalho, no sentido de que “Não é necessária a assistência por responsável legal, na homologação da rescisão contratual, ao empregado adolescente que comprove ter sido emancipado”. Como se pode perceber, a portaria se refere ao art. 439 da CLT, aqui transcrito.
Superado esse ponto controvertido, no que concerne à influência da redução da maioridade civil em relação ao Direito Previdenciário, deve ser acatado o teor do Enunciado n. 3 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, pelo qual “A redução do limite etário para a definição da capacidade civil aos 18 anos não altera o disposto no art. 16, I, da Lei 8.213/1991, que regula específica situação de dependência econômica para fins previdenciários e outras situações similares de proteção, previstas em legislação especial”.
O dispositivo legal referenciado pelo enunciado doutrinário tem a seguinte redação: “Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido”. Como a referida lei é norma especial anterior, acaba prevalecendo sobre o Código Civil, que é norma geral posterior (antinomia de segundo grau aparente, envolvendo os critérios cronológico e da especialidade, prevalecendo o último). Consigne-se que o entendimento de prevalência da norma previdenciária sobre a civil é amplamente aplicado pela jurisprudência nacional (por todos: TJMG, Apelação Cível 9549455-28.2008.8.13.0024, Belo Horizonte, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Fernando Botelho, j. 24.06.2010, DJEMG 23.09.2010 e TJSP, Apelação 994.08.205612-4, Acórdão 4468873, Campinas, 7.ª Câmara de Direito Público C, Rel. Des. Aléssio Martins Gonçalves, j. 30.04.2010, DJESP 31.05.2010).
A encerrar a presente seção, concorda-se totalmente com a professora Maria Helena Diniz, quando aponta ainda estar vigente a emancipação legal do menor militar, que possui 17 anos e que esteja prestando tal serviço, nos termos do art. 73 da Lei 4.375/1964, reproduzido pelo art. 239 do Decreto 57.654/1966 (Curso..., 2002, v. 1, p. 179).
Conforme destacado por Pietro Perlingieri, o estudo do direito não pode deixar de lado a análise da sociedade na sua historicidade local e universal. Isso porque somente com tal análise se poderá individualizar o papel e o significado da juridicidade na unidade e na complexidade do fenômeno social (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil..., 2002, p. 1). A ordem jurídica é um todo harmônico e os grandes princípios e garantias ditados pela Constituição Federal devem ter os contornos e características que a lei ordinária lhes der, sem infringi-los ou restringi-los.
Como é notório afirmar, os direitos fundamentais são diretrizes gerais, garantias de todo o povo – como sociedade – em se ver livre do poder excessivo do Estado, enquanto os direitos da personalidade são fruto da captação desses valores fundamentais regulados no interior da disciplina civilística. Como bem ensina Claus-Wilhelm Canaris, “os direitos fundamentais vigoram imediatamente em face das normas do direito privado. Esta é hoje a opinião claramente dominante. Aqui, os direitos fundamentais desempenham as funções ‘normais’, como proibições de intervenção e imperativos de tutela” (Direitos..., 2003, p. 36). O que é referenciado pelo doutrinador citado é justamente a possibilidade de aplicação imediata dos direitos que protegem a pessoa às relações privadas (eficácia horizontal).
Orlando Gomes, citando Karl Larenz, lembra que em face do menosprezo e do desapreço à dignidade humana por parte do Estado, somados à multiplicação dos atentados perpetrados contra a personalidade por particulares em razão dos progressos técnicos da era moderna, foram incentivados os tribunais da Alemanha pós-guerra a agir em proteção da pessoa humana utilizando-se de artigos da Constituição, em uma forma de “direito geral de personalidade” (Direitos da personalidade..., Novos temas..., 1983, p. 251-252).
Nessa seara, Rubens Limongi França nos ensina que por muito tempo os sistemas jurídicos somente cuidaram dos direitos da personalidade do ponto de vista do Direito Público, servindo “para mostrar a importância desses direitos, pois muitos deles integram as Declarações de Direitos que servem como garantia dos cidadãos contra as arbitrariedades do Estado” (Instituições..., 1999, p. 936).
Mas tais direitos são de tal forma importantes não só para os indivíduos, como também para o Estado Democrático de Direito, que devem ser tutelados tanto pelo Direito Público quanto pelo Direito Privado, em complementação, em constante diálogo dentro da ideia de visão unitária do sistema jurídico.
A esse propósito, aponte-se que alguns direitos da personalidade, quando analisados sob o aspecto do relacionamento com o Estado e constantes no ordenamento positivo, recebem o nome de liberdades públicas, sendo, contudo, os mesmos direitos do ponto de vista de sua tipificação, mas examinados em planos distintos. Os primeiros estão no relacionamento de uma pessoa diante de outra, isto é, nas relações privadas (direitos da personalidade); e os últimos perante o Estado (liberdades públicas), acrescidos de outros direitos econômicos, sociais e políticos (BITTAR, Carlos Alberto. Direito Civil..., 1991, p. 3).
O Título II da Constituição de 1988, sob a denominação “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, traça as prerrogativas para garantir uma convivência digna, com liberdade e com igualdade para todas as pessoas, sem distinção de raça, credo ou origem. Tais garantias são genéricas, mas são também fundamentais ao ser humano e sem elas a pessoa humana não pode atingir sua plenitude e, por vezes, sequer pode sobreviver. Nunca se pode esquecer a vital importância do art. 5.° da CF/1988 para o nosso ordenamento jurídico, ao consagrar as cláusulas pétreas, que são direitos fundamentais deferidos à pessoa.
Tais preceitos garantem, ainda, que os direitos ali elencados não só estão formalmente reconhecidos, mas também serão concreta e materialmente efetivados. Essa efetivação, no caso do indivíduo sujeito de direitos com relação a determinados bens, é feita pelo reconhecimento da existência dos direitos da personalidade.
Para tal efetivação, numa concepção civil-constitucional, Gustavo Tepedino, com base em Pietro Perlingieri, defende a existência de uma cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana. São suas palavras:
“Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2.° do art. 5.°, no sentido de não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento” (A tutela..., Temas de direito civil..., 2004, tomo I, p. 50).
Adotando a tese de Pietro Perlingieri e de Gustavo Tepedino, na IV Jornada de Direito Civil, evento de 2006, foi aprovado o Enunciado n. 274 do CJF/STJ, um dos mais importantes enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil. A primeira parte da ementa prevê que “Os direitos da personalidade, regulados de maneira não exaustiva pelo Código Civil, são expressões da cláusula geral de tutela da pessoa humana, contida no art. 1.°, III, da Constituição Federal”. O enunciado também traz como conteúdo o belo trabalho de Maria Celina Bodin de Moraes sobre o tema (O princípio da dignidade..., 2006). Entre os contemporâneos, também são entusiastas dessa cláusula geral de proteção da personalidade Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, apontando o direito à vida digna como pressuposto dos direitos da personalidade (Direito civil. Teoria Geral..., 2006, p. 109).
Mas, afinal, o que seriam então os direitos da personalidade?
Segundo Rubens Limongi França, trata-se de “faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos” (Instituições..., 1996, p. 1.033). Para Maria Helena Diniz, os direitos da personalidade “são direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua integridade física (vida, alimentos, próprio corpo vivo ou morto, corpo alheio, vivo ou morto, partes separadas do corpo vivo ou morto); a sua integridade intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, artística e literária) e sua integridade moral (honra, recato, segredo pessoal, profissional e doméstico, imagem, identidade pessoal, familiar e social)” (Curso de direito civil..., 2002, v. 1, p. 135). Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, com a didática que lhes é peculiar, conceituam os direitos da personalidade como “aqueles que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si e em suas projeções sociais” (Novo..., 2003, v. I, p. 144).
Pelos conceitos transcritos, observa-se que os direitos da personalidade têm por objeto os modos de ser, físicos ou morais do indivíduo e o que se busca proteger com eles são, exatamente, os atributos específicos da personalidade, sendo personalidade a qualidade do ente considerado pessoa. Na sua especificação, a proteção envolve os aspectos psíquicos do indivíduo, além de sua integridade física, moral e intelectual, desde a sua concepção até sua morte. Esse, na opinião deste autor, é o seu melhor conceito.
Em síntese, pode-se afirmar que os direitos da personalidade são aqueles inerentes à pessoa e à sua dignidade (art. 1.°, III, da CF/1988). Ademais, é interessante associar os direitos da personalidade com cinco grandes ícones, colocados em prol da pessoa no atual Código Civil e visualizados a seguir:
a) Vida e integridade físico-psíquica, estando o segundo conceito inserido no primeiro, por uma questão lógica.
b) Nome da pessoa natural ou jurídica, com proteção específica constante entre os arts. 16 a 19 do CC, bem como na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973).
c) Imagem, classificada em imagem-retrato – reprodução corpórea da imagem, representada pela fisionomia de alguém; e imagem-atributo – soma de qualificações de alguém ou repercussão social da imagem (DINIZ, Maria Helena. Código Civil..., 2005, p. 43).
d) Honra, com repercussões físico-psíquicas, subclassificada em honra subjetiva (autoestima) e honra objetiva (repercussão social da honra).
e) Intimidade, sendo certo que a vida privada da pessoa natural é inviolável, conforme previsão expressa do art. 5.°, X, da CF/1988: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Não se olvide que a exposição acima foi inspirada na doutrina de Rubens Limongi França, que divide os direitos da personalidade em três grandes grupos. O primeiro deles está relacionado ao direito à integridade física, englobando o direito à vida e ao corpo, vivo ou morto. O segundo grupo é afeito ao direito à integridade intelectual, abrangendo a liberdade de pensamento e os direitos do autor. Por fim, há o direito à integridade moral, relativo às liberdades política e civil, à honra, ao recato, ao segredo, à imagem e à identidade pessoal, familiar e social (FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições..., 4. ed., 1996. p. 939-940). Essa divisão influenciou muitos estudiosos do Direito Privado brasileiro, caso de Maria Helena Diniz, Giselda Hironaka, Álvaro Villaça Azevedo, Silmara Chinellato, Francisco Amaral e Nestor Duarte.
Pois bem, na concepção civil-constitucional, conforme os ensinamentos de Gustavo Tepedino (A tutela..., Temas de direito civil..., 2004, t. I), esses ícones devem ser relacionados com três princípios básicos constitucionais, a saber:
– Princípio de proteção da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil (art. 1.°, III, da CF/1988).
– Princípio da solidariedade social, outro dos objetivos da República Federativa do Brasil (construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” – art. 3.°, I, da CF/1988), visando também à erradicação da pobreza (art. 3.°, III, da CF/1988).
– Princípio da igualdade lato sensu ou isonomia, eis que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5.°, caput, da CF/1988).
Didaticamente, pode-se aqui trazer uma regra de três, afirmando que, na visão civil-constitucional, assim como os direitos da personalidade estão para o Código Civil, os direitos fundamentais estão para a Constituição Federal. Justamente por isso é que o Enunciado n. 274 da IV Jornada de Direito Civil prevê que o rol dos direitos da personalidade previsto entre os arts. 11 a 21 do CC é meramente exemplificativo (numerus apertus). Aliás, mesmo o rol constante da Constituição não é taxativo, pois não exclui outros direitos colocados a favor da pessoa humana.
A título de exemplo de direito da personalidade que não consta de qualquer norma jurídica, cite-se o direito ao esquecimento, tão debatido na atualidade por doutrina e jurisprudência. No campo doutrinário, tal direito foi reconhecido pelo Enunciado n. 531, aprovado na VI Jornada de Direito Civil, realizada em 2013, com o seguinte teor: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. De acordo com as justificativas da proposta, “Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados”.
Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, destaque-se decisão prolatada pela sua Quarta Turma, no Recurso Especial 1.334.097/RJ, julgado em junho de 2013. O acórdão reconheceu o direito ao esquecimento de homem inocentado da acusação de envolvimento na chacina da Candelária e que foi retratado pelo extinto programa “Linha Direta”, da TV Globo, mesmo após a absolvição criminal. A emissora foi condenada a indenizar o autor da demanda, por danos morais, em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais).
De acordo com o relator da decisio, Ministro Luis Felipe Salomão, “Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, que, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado”. Nesse contexto, aduz o julgador que “Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo de folha de antecedentes, assim também à exclusão dos registros da condenação no instituto de identificação, por maiores e melhores razões, aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos”.
De fato, o direito ao esquecimento deve ser reconhecido como um verdadeiro direito da personalidade. Todavia, tal conclusão não afasta a necessidade de sua ponderação, como outros direitos da personalidade e com valores fundamentais.
Nesse contexto, com conteúdo prático fundamental para a compreensão da tendência da constitucionalização do Direito Civil, esse mesmo Enunciado n. 274 da IV Jornada dispõe na sua segunda parte que em caso de colisão entre os direitos da personalidade deve-se adotar a técnica de ponderação. O desenvolvimento dessa técnica, no Direito Comparado, é atribuído a Robert Alexy, jurista alemão (Teoria..., 2008).
Pela técnica de ponderação, em casos de difícil solução (hard cases) os princípios e direitos fundamentais devem ser sopesados no caso concreto pelo aplicador do Direito, para se buscar a melhor solução. A técnica exige dos aplicadores uma ampla formação, inclusive interdisciplinar, para que não conduza a situações absurdas. O presente autor é grande entusiasta da utilização dessa técnica, de imensa carga valorativa, como também são os autores do Direito Civil Constitucional e parcela considerável dos constitucionalistas. Por diversas vezes essa técnica será na presente obra utilizada para a solução de casos práticos de conteúdo bem interessante. Para ilustrar de imediato a incidência da ponderação, vejamos outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, que trata de caso concreto bem peculiar (Informativo n. 467 do STJ):
“Indenização. Danos materiais e morais. Exame involuntário. Trata-se, na origem, de ação de reparação por danos materiais e compensação por danos morais contra hospital no qual o autor, recorrente, alegou que preposto do recorrido, de forma negligente, realizou exame não solicitado, qual seja, anti-HIV, com resultado positivo, o que causou enorme dano, tanto material quanto moral, com manifesta violação da sua intimidade. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, entendeu que, sob o prisma individual, o direito de o indivíduo não saber que é portador de HIV (caso se entenda que este seja um direito seu, decorrente da sua intimidade) sucumbe, é suplantado por um direito maior, qual seja, o direito à vida longeva e saudável. Esse direito somente se revelou possível ao autor da ação com a informação, involuntária é verdade, sobre o seu real estado de saúde. Logo, mesmo que o indivíduo não queira ter conhecimento da enfermidade que o acomete, a informação correta e sigilosa sobre o seu estado de saúde dada pelo hospital ou laboratório, ainda que de forma involuntária, tal como no caso, não tem o condão de afrontar sua intimidade, na medida em que lhe proporciona a proteção de um direito maior. Assim, a Turma, por maioria, negou provimento ao recurso” (REsp 1.195.995/SP, Rel. originária Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Massami Uyeda, j. 22.03.2011).
Analisadas tais construções introdutórias, passa-se à classificação e principais características dos direitos da personalidade consagradas pelo Código Civil de 2002. Esclareça-se, de antemão, que a codificação privada tratou especificamente dos direitos da personalidade entre os seus arts. 11 e 21. Com se extrai da obra de Anderson Schreiber, alguns dos novos comandos apresentam problemas técnicos, pois houve um tratamento excessivamente rígido da matéria (Direitos..., 2011, p. 12). Como aponta o jurista, “muitos dos dispositivos dedicados ao tema trazem soluções absolutas, definitivas, fechadas, que, como se verá adiante, não se ajustam bem à realidade contemporânea e à própria natureza dos direitos da personalidade” (Direitos..., 2011, p. 12).
A classificação dos direitos da personalidade não tem na doutrina uma conceituação global, divergindo os autores sobre o tema. Contudo, em contrapartida, não há como negar que os direitos da personalidade são aqueles que invariavelmente estão ligados à pessoa humana, ainda que com suas emanações e prolongamentos, pois representam os direitos mais íntimos e fundamentais do ser humano. O Código Civil de 2002 também relaciona os direitos da personalidade às pessoas jurídicas, pela redação do seu art. 52, dispositivo que vem despertando grandes discussões, justamente porque os direitos da personalidade, para parcela considerável dos estudiosos, seriam apenas inerentes à pessoa humana.
Pois bem, os direitos da personalidade são, em suma, aquelas qualidades que se agregam ao homem, sendo intransmissíveis, irrenunciáveis, extrapatrimoniais e vitalícios, comuns da própria existência da pessoa e cuja norma jurídica permite sua defesa contra qualquer ameaça. O direito objetivo autoriza a defesa dos direitos da personalidade, que, por sua vez, são direitos subjetivos da pessoa de usar e dispor daquilo que lhe é próprio, ou seja, um poder da vontade do sujeito somado ao dever jurídico de respeitar aquele poder por parte de outrem.
Tratando-se assim de direitos subjetivos, inerentes à pessoa (inatos), os direitos da personalidade são permissões jurídicas dadas pela norma que, no caso, é o Código Civil. Porém, se analisarmos concretamente o Código de 2002, percebe-se que muitos dos bens da personalidade, dentro das características expostas, deixaram de ser abordados pelo legislador, como aqueles relacionados com a bioética e o biodireito. Sobre tais temas, repise-se, prevê o Enunciado n. 2 do CJF/STJ que “sem prejuízo dos direitos da personalidade nele assegurados, o art. 2.° do Código Civil não é sede adequada para questões emergentes da reprogenética humana, que deve ser objeto de um estatuto próprio”, o que confirma as palavras do próprio Miguel Reale de que não cabe à codificação privada tratar desses assuntos, típicos da legislação especial. Esse estatuto próprio, pelo menos parcialmente, é a Lei 11.105/2005 (Lei de Biossegurança).
Da análise do texto legal nota-se que a vida, o nome, a integridade físico-psíquica, a honra, a imagem, a produção intelectual e a intimidade foram cobertos pelo manto da nova codificação privada, enquanto outros deixaram de ser devidamente abordados, caso da opção sexual da pessoa humana. De qualquer modo, conforme já afirmado, não se pode dizer que os direitos da personalidade tratados pelo Código Civil são os únicos admitidos (Enunciado n. 274 do CJF/STJ). Há uma cláusula geral de tutela humana, prevista na CF/1988 (art. 1.°, III), que admite outros direitos da pessoa.
Relativamente ao tema, Gustavo Tepedino demonstra a existência de duas grandes correntes que procuram justificar a existência dogmática de tal proteção, nos seguintes termos: “o debate que se propõe mostra-se, pois, de grande atualidade, em razão de o Código Civil de 2002 ter dedicado um capítulo específico ao tema, que deve ser interpretado à luz do art. 1.°, III, da Constituição Federal. Tem-se como induvidoso que as previsões constitucionais e legislativas, dispersas e casuísticas, não lograram êxito em tutelar de forma exaustiva todas as manifestações da personalidade. Diante disso, tornam-se superadas tanto as teorias pluralistas, segundo as quais os chamados direitos de personalidade se encontram tipificados nos textos legislativos, quanto as teorias monistas, que sustentam a existência de um único direito de personalidade, originário e geral, capaz de conter todas as multifacetadas situações existenciais” (Texto de Apoio para o Curso à Distância em Direito Civil Constitucional, oferecido pela PUC/MG, out. 2004. Enviado por mensagem eletrônica).
Seguindo as palavras de Tepedino, será demonstrada uma forte tendência de despatrimonialização e personalização do Direito Privado (alguns preferem utilizar a expressão repersonalização, caso de Luiz Edson Fachin), o que repercute na análise de vários institutos de Direito Civil, com relevante função prática. Por certo é que, sob o prisma constitucional, os direitos da personalidade não podem estar enquadrados em um rol taxativo de situações. Aliás, mesmo o rol de direitos constante da Constituição não é taxativo, pois não exclui outros direitos colocados a favor da pessoa humana. Como outro exemplo, cite-se o direito à opção sexual, que não consta expressamente da Constituição Federal. Concretizando tal direito, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela possibilidade de reparação imaterial em decorrência da utilização de apelido em notícia de jornal, com o uso do termo “bicha”. Vejamos a ementa da decisão, que resolve a questão pelo abuso de direito, instituto que ainda será estudado.
“Direito civil. Indenização por danos morais. Publicação em jornal. Reprodução de cognome relatado em boletim de ocorrências. Liberdade de imprensa. Violação do direito ao segredo da vida privada. Abuso de direito. A simples reprodução, por empresa jornalística, de informações constantes na denúncia feita pelo Ministério Público ou no boletim policial de ocorrência consiste em exercício do direito de informar. Na espécie, contudo, a empresa jornalística, ao reproduzir na manchete do jornal o cognome – ‘apelido’ – do autor, com manifesto proveito econômico, feriu o direito dele ao segredo da vida privada, e atuou com abuso de direito, motivo pelo qual deve reparar os consequentes danos morais. Recurso especial provido” (STJ, REsp 613.374/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 17.05.2005, DJ 12.09.2005, p. 321).
Retornando ao atual Código Civil, esse traz características dos direitos inerentes a pessoas de forma tímida, prevendo o seu atual art. 11 que “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
O antigo Projeto 6.960/2002, de autoria do Deputado Ricardo Fiuza, atual Projeto 699/2011, pretende alterar tal dispositivo, passando o art. 11 do CC a ter a seguinte redação:
“Art. 11. O direito à vida, à integridade físico-psíquica, à identidade, à honra, à imagem, à liberdade, à privacidade, à opção sexual e outros reconhecidos à pessoa são natos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis”.
Inicialmente, conforme reconhecia o próprio Deputado Fiuza, consta no texto acima um erro de digitação. Onde se lê a expressão natos deverá constar inatos, que significa inerentes à pessoa, ínsitos à sua qualidade, originários do sujeito. Muitos doutrinadores associam a expressão à concepção ou ao nascimento da pessoa. Todavia, a melhor compreensão de inato retira tal requisito, pois existem direitos da personalidade que não surgem em tais momentos, caso dos direitos de autor (por todos, ver: CHINELLATO, Silmara Juny. Direito..., 2008, p. 222-223).
Observa-se que o antigo Projeto Fiuza pretende ampliar o texto atual, trazendo tentativa de conceituar tais direitos, bem como as suas principais características. Em obra em que comentou as principais inovações do Código Civil de 2002, o Deputado Ricardo Fiuza expunha algumas críticas em relação a tal mudança. A mais contundente foi formulada pelo saudoso Miguel Reale, para quem “conceber o direito da personalidade como direito inato nos reconduz ao mais superado dos jusnaturalismos. Não tem cabimento declarar que os direitos da personalidade não podem ser expropriados” (FIUZA, Ricardo. O novo Código Civil..., 2003, p. 36).
Por tal crítica, fica em dúvida a proposta de mudança.
Primeiro porque não fica claro se a alteração esgota as características de tais direitos, o que não parece ser a intenção. Se assim for, não é bem-vinda a proposta diante do que ensina a maior parte da doutrina, e pelo teor do Enunciado n. 274 da IV Jornada de Direito Civil. Segundo, pelas palavras do próprio Miguel Reale, que aqui foram transcritas. Em resumo, acredita-se que, quando da tramitação do projeto, tais pontos deverão ser discutidos de maneira exaustiva, o que deve ser acompanhado pela sociedade e pela civilística nacional.
Mesmo sendo inicialmente contrários à mudança no ponto de vista científico, para fins didáticos, cabe apontar e discutir as características dos direitos da personalidade, pelo texto do antigo Projeto Ricardo Fiuza (PL 6.960/2002, atual PL 699/2011). É o que será feito a partir de então.
Para afastar qualquer dúvida quanto ao sentido da expressão inato, é interessante expor o que consta no moderno Dicionário Houaiss da língua portuguesa: “inato. 1 que pertence ao ser desde o seu nascimento; inerente, natural, congênito (talento. i)”.
Dessa forma, por ser o direito da personalidade decorrente da natureza da pessoa, é indeclinável o seu caráter ilimitado, “ante a impossibilidade de se imaginar um número fechado de direitos da personalidade” (DINIZ, Maria Helena. Curso..., 2002, v. 1, p. 121). Além disso, os direitos da personalidade têm também caráter absoluto, com eficácia erga omnes (contra todos), principalmente se confrontados com os direitos pessoais puros, caso dos direitos obrigacionais e contratuais.
Entretanto, por uma questão lógica, tal regra pode comportar exceções, havendo, eventualmente, relativização desse caráter ilimitado e absoluto. Prevê o Enunciado n. 4 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, que “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral”.
Em complemento, foi aprovado outro enunciado doutrinário, de número 139, na III Jornada de Direito Civil, segundo o qual “os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariando a boa-fé objetiva e os bons costumes”.
Pelo teor desses dois enunciados da doutrina civil, a limitação voluntária constante do art. 11 do Código Civil seria somente aquela não permanente e que não constituísse abuso de direito, nos termos da redação do art. 187 da mesma codificação, que utiliza as expressões boa-fé e bons costumes. Essa possibilidade de limitação, que será ainda estudada, já representa exceção à suposta natureza absoluta de tais direitos.
Em reforço, o art. 15 do CC/2002 parece ser expresso em trazer limitações aos direitos da personalidade. De acordo com tal dispositivo, ninguém pode ser constrangido, sob risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica, consagrando o Código Civil os direitos do paciente. Alguns exemplos práticos podem ser analisados à luz desse último comando legal.
No primeiro, um determinado paciente está à beira da morte, necessitando de uma cirurgia. Mas esta intervenção lhe trará também alto risco, ficando a dúvida se o médico deve ou não intervir. Pelo que consta no Novo Código de Ética Médica (art. 41 da Resolução 1.931/2009 do Conselho Federal de Medicina), e em decorrência da responsabilidade civil dos profissionais liberais da área da saúde (art. 951 do CC), não há dúvidas de que a intervenção deve ocorrer, sob pena de responsabilização do médico, nas esferas civil, penal e administrativa. O que se nota, nesse contexto, é que o art. 15 do Código não pode permitir uma conclusão que sacrifique a vida, valor fundamental inerente à pessoa humana.
Quanto a essa situação, aliás, foi muito debatida e criticada a Resolução 1.805 do Conselho Federal de Medicina, de 9 de novembro de 2006, que possibilita aos profissionais da área de saúde que deixem de empregar técnicas médicas em casos de pacientes terminais, o que se denomina ortotanásia. É a íntegra da referida resolução:
“Art. 1.° É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1.°O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2.° A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3.° É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.
Art. 2.° O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar”.
Destaque-se que o ato de vontade do paciente de não querer se submeter a determinado tratamento é denominado testamento vital ou biológico. Isso, apesar de não ser propriamente um testamento, pois a disposição é feita para gerar efeitos antes da morte.
Sem qualquer hipocrisia, a resolução só acaba regulamentando situações que já ocorriam na prática médica. De qualquer forma, fica em dúvida se ela extrapola os limites da autonomia privada do indivíduo, da sua liberdade como valor constitucional, diante da mitigação da proteção da vida.
A questão é tão intrincada que, em outubro de 2007, a 14.ª Vara Federal do Distrito Federal afastou os efeitos da referida resolução, por meio de antecipação de tutela. Em seus argumentos, aduz o magistrado Roberto Luis Luchi Demo:
“Pois bem. A lide cinge-se à legitimidade da Resolução CFM n.° 1.805/2006, que regulamenta a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis. Impende salientar, inicialmente, que a questão é complexa e polêmica, como se infere da petição inicial desta ação civil pública, que tem nada menos que 129 folhas, vindo instruída com os documentos de fls. 133-296, bem assim das informações preliminares do Réu, que têm 19 folhas e são instruídas com os documentos encartados em dois volumes de autos, totalizando mais de 400 folhas. Na verdade, trata-se de questão imensamente debatida no mundo inteiro. Lembre-se, por exemplo, da repercussão do filme espanhol ‘Mar Adentro’ e do filme americano ‘Menina de Ouro’. E o debate não vem de hoje, nem se limita a alguns campos do conhecimento humano, como o Direito ou a Medicina, pois sobre tal questão há inclusive manifestação da Igreja, conforme a ‘Declaração sobre a Eutanásia’ da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aprovada em 05 de maio de 1980, no sentido de que ‘na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo’. Entretanto, analisada a questão superficialmente, como convém em sede de tutela de urgência, e sob a perspectiva do Direito, tenho para mim que a tese trazida pelo Conselho Federal de Farmácia nas suas informações preliminares, no sentido de que a ortotanásia não antecipa o momento da morte, mas permite tão somente a morte em seu tempo natural e sem utilização de recursos extraordinários postos à disposição pelo atual estado da tecnologia, os quais apenas adiam a morte com sofrimento e angústia para o doente e sua família, não elide a circunstância segundo a qual tal conduta parece caracterizar crime de homicídio no Brasil, nos termos do art. 121 do Código Penal. E parece caracterizar crime porque o tipo penal previsto no sobredito art. 121, sempre abrangeu e parece abranger ainda tanto a eutanásia como a ortotanásia, a despeito da opinião de alguns juristas consagrados em sentido contrário. Tanto assim que, como bem asseverou o representante do Ministério Público Federal, em sua bem-elaborada petição inicial, tramita no Congresso Nacional o ‘anteprojeto de reforma da parte especial do Código Penal, colocando a eutanásia como privilégio ao homicídio e descriminando a ortotanásia’ (fl. 29).
Desse modo, a glosa da ortotanásia do mencionado tipo penal não pode ser feita mediante resolução aprovada pelo Conselho Federal de Medicina, ainda que essa resolução venha de encontro aos anseios de parcela significativa da classe médica e até mesmo de outros setores da sociedade. Essa glosa há de ser feita, como foi feita em outros países, mediante lei aprovada pelo Parlamento, havendo inclusive projeto de lei nesse sentido tramitando no Congresso Nacional.
Em última análise, para suprir a ausência de lei específica, a glosa pode ser ‘judicializada’ mediante provocação ao Supremo Tribunal Federal, como ocorreu, por exemplo, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.° 54, ajuizada em 17 de junho de 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde e na qual se discute se ocorre crime de aborto no caso de anencéfalo.
Registro, para efeito de documentação, a ementa do acórdão proferido em questão de ordem na referida ação constitucional, litteris: (...). À luz dessas considerações, o aparente conflito entre a resolução questionada e o Código Penal é bastante para reconhecer a relevância do argumento do Ministério Público Federal. Dizer se existe ou não conflito entre a resolução e o Código Penal é questão a ser enfrentada na sentença. Mas a mera aparência desse conflito já é bastante para impor a suspensão da Resolução CFM n.° 1.805/2006, mormente quando se considera que sua vigência, iniciada com a publicação no DOU do dia 28 de novembro de 2006, traduz o placet do Conselho Federal de Medicina com a prática da ortotanásia, ou seja, traduz o placet do Conselho Federal de Medicina com a morte ou o fim da vida de pessoas doentes, fim da vida essa que é irreversível e não pode destarte aguardar a solução final do processo para ser tutelada judicialmente. Do exposto, defiro a antecipação de tutela para suspender os efeitos da Resolução CFM n.° 1.805/2006”.
A problemática é muito polêmica, merecendo reflexões profundas. Atente-se ao fato de que existem projetos de lei para regulamentar a prática do chamado testamento vital, caso do PL 524/2009, em curso no Senado Federal. Indiretamente, pode-se dizer que o art. 41, parágrafo único, do novo Código de Ética Médica acaba por permitir a prática, ao enunciar que “Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. Mais recentemente, a Resolução 1.955/2012, do Conselho Federal de Medicina, passou a estabelecer que a vontade do paciente é soberana, prevalecendo em relação à vontade do representante legal. Anote-se, por oportuno, que na V Jornada de Direito Civil (2011) foi aprovado enunciado doutrinário possibilitando juridicamente o chamado testamento vital ou biológico (Enunciado n. 527). Em suma, constata-se a sua ampla admissão entre os juristas.
Superado esse ponto, surge então um outro hard case, um caso de difícil solução, tipicamente brasileiro. No mesmo exemplo antes exposto, se o paciente sob risco de morte, por convicções religiosas, negar-se à intervenção cirúrgica, mesmo assim deve o médico efetuar a operação? Tal questão foi enfrentada por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, apontando tais autores que “nenhum posicionamento que se adotar agradará a todos, mas parece-nos que, em tais casos, a cautela recomenda que as entidades hospitalares, por intermédio de seus representantes legais, obtenham o suprimento da autorização judicial pela via judicial, cabendo ao magistrado analisar, no caso concreto, qual o valor jurídico a preservar” (Novo..., 2003, v. I, p. 163).
Com todo o respeito em relação a posicionamento em contrário, conclui-se que, em casos de emergência e de real risco de morte, deverá ocorrer a intervenção cirúrgica, eis que o direito à vida merece maior proteção do que o direito à liberdade, particularmente quanto àquele relacionado com a opção religiosa. Em síntese, fazendo uma ponderação entre direitos fundamentais – direito à vida X direito à liberdade ou opção religiosa –, o primeiro deverá prevalecer.
Deve ficar claro que esse exemplo não visa a captar opiniões sobre o tema religião, mas somente demonstrar que um direito da personalidade pode ser relativizado se entrar em conflito com outro direito da personalidade.
O Tribunal de Justiça de São Paulo tem seguido o posicionamento que aqui foi defendido, afastando eventual direito à indenização do paciente que, mesmo contra a sua vontade, recebeu a transfusão de sangue:
“Indenizatória – Reparação de danos – Testemunha de Jeová – Recebimento de transfusão de sangue quando de sua internação – Convicções religiosas que não podem prevalecer perante o bem maior tutelado pela Constituição Federal que é a vida – Conduta dos médicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e ética profissional, posto que somente efetuaram as transfusões sanguíneas após esgotados todos os tratamentos alternativos – Inexistência, ademais, de recusa expressa a receber transfusão de sangue quando da internação da autora – Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuadas com exames médicos, entre outras, que não merece ser acolhido, posto não terem sido os valores despendidos pela apelante – Recurso não provido” (TJSP, Ap. Cív. 123.430-4 – Sorocaba – 3.ª Câmara de Direito privado – relator Flávio Pinheiro – 07.05.2002 – v.u.).
Do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul pode ser extraída decisão no mesmo sentido, dispensando até a necessidade de autorização judicial para a cirurgia, em casos de risco à vida do paciente. Na verdade, o julgado reconhece que sequer há interesse de agir do hospital em casos tais:
“Apelação cível. Transfusão de sangue. Testemunha de Jeová. Recusa de tratamento. Interesse em agir. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido” (TJRS, Apelação Cível 70020868162, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, julgado em 22.08.2007).
Não há como discordar das duas decisões aqui transcritas, que parecem traduzir o entendimento majoritário da jurisprudência e do senso comum. Por oportuno, esclareça-se que há corrente de respeito que entende pela prevalência da vontade do paciente. Nessa linha, entende Anderson Schreiber que “intolerável, portanto, que uma Testemunha de Jeová seja compelida, contra a sua livre manifestação de vontade, a receber transfusão de sangue, com base na pretensa superioridade do direito à vida sobre a liberdade de crença. Note-se que a priorização da vida representa, ela própria, uma ‘crença’, apenas que da parte do médico, guiado, em sua conduta, por um entendimento que não deriva das normas jurídicas, mas das suas próprias convicções científicas e filosóficas. (...). A vontade do paciente deve ser respeitada, porque assim determina a tutela da dignidade humana, valor fundamental do ordenamento jurídico brasileiro” (Direitos..., 2011, p. 52).
Igualmente adotando o entendimento pela prevalência da vontade do paciente por convicções religiosas, na V Jornada de Direito Civil foi aprovado o seguinte enunciado doutrinário: “O direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no art. 5.°, VI da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante” (Enunciado n. 403). Essa também é a opinião, por exemplo, de Álvaro Villaça Azevedo e Nelson Nery Jr., conforme pareceres dados sobre o caso, cujos conteúdos chegaram ao conhecimento deste autor.
Com o devido respeito, repise-se, não se filia à conclusão adotada pelo enunciado doutrinário e pelos juristas citados, pois as convicções religiosas manifestadas pela autonomia privada não podem prevalecer sobre a vida e a integridade física.
Conforme consta no próprio art. 11 do CC/2002, os direitos da personalidade são intransmissíveis, não cabendo, por regra, cessão de tais direitos, seja de forma gratuita ou onerosa. Daí por que não podem ser objeto de alienação (direitos inalienáveis), de cessão de crédito ou débito (direitos incessíveis), de transação (intransacionáveis) ou de compromisso de arbitragem. No último caso, consta previsão expressa no art. 852 do CC em vigor, que veda o compromisso para solução de questões que não tenham caráter estritamente patrimonial.
Porém, tanto doutrina quanto jurisprudência, pelo teor do que consta do Enunciado n. 4 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil, aqui transcrito, reconhecem a disponibilidade relativa dos direitos da personalidade. A título de exemplo, podem ser citados os casos que envolvem a cessão onerosa dos direitos patrimoniais decorrentes da imagem, que não pode ser permanente. Também ilustrando, cite-se a cessão patrimonial dos direitos do autor, segundo o art. 28 da Lei 9.610/1998, pelo qual “cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”. A cessão gratuita também é possível, como no caso de cessão de partes do corpo, desde que para fins científicos ou altruísticos (art. 14 do CC).
Vale o esclarecimento de Roxana Cardoso Brasileiro Borges, no sentido de que o direito da personalidade não é disponível no sentido estrito, sendo transmissíveis apenas as expressões do uso do direito da personalidade (Disponibilidade..., 2005, p. 11). Em outras palavras, existem aspectos patrimoniais dos direitos da personalidade que podem ser destacados ou transmitidos, desde que de forma limitada.
Também ilustrando, pode-se dizer que um atleta profissional tem a liberdade de celebrar um contrato com uma empresa de material esportivo, para a exploração patrimonial de sua imagem, como é comum. Entretanto, esse contrato não pode ser vitalício, como ocorre algumas vezes na prática, principalmente em casos de contratos celebrados entre jogadores de futebol brasileiros e empresas multinacionais. Esses contratos, geralmente, são celebrados no estrangeiro, mas se fossem constituídos no Brasil seriam nulos, por ilicitude de seu objeto, pois a cessão de uso dos direitos da personalidade é permanente (art. 166, II, do CC e Enunciado n. 4 do CJF/STJ).
Todas essas hipóteses constituem exceções à regra da intransmissibilidade e indisponibilidade, que confirmam a tendência de relativização de princípios, direitos e deveres, realidade atual da órbita constitucional e privada. Concluindo sobre o tema, o desenho a seguir demonstra que existe uma parcela dos direitos da personalidade que é disponível (disponibilidade relativa), aquela relacionada com direitos subjetivos patrimoniais.
Na verdade, o desenho serve para explicar não só a presente característica dos direitos da personalidade, mas outras que seguirão neste capítulo da obra.
Pelo que consta no sempre citado art. 11 do Código Civil Brasileiro de 2002 os direitos da personalidade não podem ser objeto de renúncia por seu titular (direitos irrenunciáveis). Esse caráter realça a natureza cogente, ou de ordem pública, das normas relacionadas com tal proteção, particularmente as que constam desse capítulo específico da codificação.
Como aplicação prática desse dispositivo, entende-se que não terá validade, sendo nulo (nulidade absoluta), o chamado contrato de namoro. Por esse contrato, pessoas que mantém união estável entre si renunciam aos efeitos patrimoniais e pessoais dela decorrentes. Sobre o tema em questão, indaga e conclui Pablo Stolze Gagliano: “nesse contexto o ‘contrato de namoro’ poderia ser considerado como uma alternativa para aqueles casais que pretendessem manter a sua relação fora do âmbito da incidência das regras da união estável? Poderiam, pois, por meio de um documento, tornar firme o reconhecimento de que aquela união é apenas um namoro, sem compromisso de constituição de família? Em nosso pensamento, temos a convicção de que tal contrato é completamente desprovido de validade jurídica. A união estável é um fato da vida, uma situação fática reconhecida pelo Direito de Família que se constitui durante todo o tempo em que as partes se portam como se casados fossem, e com indícios de definitividade” (Contrato de namoro..., Disponível em: <www.flaviotartuce.adv.br>, Seção artigos de convidados. Acesso em: 2 de março de 2005).
A jurisprudência já afastou os efeitos do chamado contrato de namoro, em decisão da 7.ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em que foi relator o Des. Luiz Felipe Brasil Santos (Proc. 70006235287, data de julgamento: 16.06.2004). Segundo o magistrado, “Esses abortos jurídicos que andam surgindo por aí, que são nada mais que o receio de que um namoro espontâneo, simples e singelo, resultante de um afeto puro, acaba se transformando em uma união com todos os efeitos patrimoniais indesejados ao início”.
Estamos filiados aos magistrados citados, por três razões básicas.
Primeiro, porque a união estável envolve direitos existenciais de personalidade, que não podem ser renunciados. Em reforço lembre-se de que o próprio Código Civil consagra a irrenunciabilidade dos alimentos, conforme previsão do seu art. 1.707, revelando o contrato de namoro um afastamento natural dessa última regra.
A segunda razão está relacionada com o fato de que são normas de ordem pública que irão apontar, dependendo de análise pelo aplicador, a configuração ou não da entidade familiar, que constitui um fato jurídico e social. Assim, há no contrato de namoro uma fraude à lei imperativa, causa de nulidade absoluta, conforme o art. 166, VI, do CC.
Terceiro, porque a autonomia privada (antiga autonomia da vontade) manifestada em um contrato encontra limitações nas normas de ordem pública e nos preceitos relacionados com a dignidade da pessoa humana, melhor expressão do princípio da função social do contrato, um dos baluartes da nova codificação (art. 421). Essa conclusão pode ser percebida pelo teor do Enunciado n. 23 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil, pelo qual “a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”. A proteção dos direitos da personalidade em sede contratual constitui um dos aspectos da eficácia interna da função social dos contratos, entre as partes contratantes. Outro enunciado, de número 360, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, reconhece a eficácia interna do novo princípio contratual.
A mesma tese vale para os contratos assinados pelos participantes de reality shows, caso do programa Big Brother Brasil, veiculado pela TV Globo. Em programas dessa natureza, é comum a celebração de um contrato em que o participante renuncia ao direito a qualquer indenização a título de dano moral, em decorrência da edição de imagens. O contrato de renúncia é nulo, sem dúvida, aplicação direta dos arts. 11 e 166, VI, do CC. Por outro lado, concorda-se com Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado quando afirmam que o programa, em si, não traz qualquer lesão a direitos da personalidade (Código Civil..., 2005, p. 23). No entanto, por outro lado, saliente-se que pode o participante ter a sua honra maculada pelo programa televisivo, dependendo da forma como as imagens são expostas, cabendo medidas judiciais de proteção em casos tais (art. 12 do CC).
Também não exclui o direito à indenização o contrato assinado por atleta profissional com o clube ou outra entidade, em que assume todos os riscos da atividade por ele desempenhada, eximindo o último. Logicamente, se as regras do esporte e os limites do bom senso não são respeitados, haverá dever de indenizar – desde que presentes os elementos da responsabilidade civil –, como no caso do clube de futebol que tem conhecimento, por meio de sua diretoria e prepostos, de estado de saúde crítico que acomete um jogador de futebol. Ainda ilustrando, pode responder um promotor de lutas pela conduta desmedida de um lutador profissional, fora das regras do jogo.
Superada a presente discussão, passa-se ao estudo da imprescritibilidade dos direitos da personalidade.
Não restam dúvidas de que os direitos da personalidade, por envolverem a aclamada ordem pública, são imprescritíveis, segundo aponta com maestria parcela respeitável da doutrina. Leciona Francisco Amaral que os direitos da personalidade são “imprescritíveis no sentido de que não há prazo para o seu exercício. Não se extinguem pelo seu não uso, assim como sua aquisição não resulta do curso do tempo” (Direito civil – introdução..., 2003, p. 252). No mesmo sentido, esse também é o entendimento de Maria Helena Diniz (Curso de direito civil..., 2002, v. 1, p. 120), Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona (Novo..., 2003, v. I, p. 156).
No sentido técnico, contudo, diante da adoção da teoria de Agnelo Amorim Filho pelo novo Código Civil, melhor seria considerar que tais direitos não estão sujeitos à prescrição do que usar a expressão direitos imprescritíveis. Isso porque, conforme será visto, não é o direito que prescreve, mas a pretensão (art. 189 do CC). De qualquer forma continuaremos a utilizar tal expressão, corriqueira que é na doutrina e na jurisprudência. Em suma, a utilização atende a fins didáticos, de facilitação.
Diante dessa característica, fica a dúvida: a ação ou pretensão para reparar danos decorrentes de lesão a direito da personalidade, em casos de flagrante lesão à dignidade humana, é imprescritível, ou prescreve em três anos, pelo que consta no art. 206, § 3.°, V, do CC? Duas correntes doutrinárias surgem da indagação.
Para a primeira, já demonstrada e com a qual se concorda, não há qualquer prazo prescricional, por envolver a matéria ordem pública. Esse posicionamento, mais condizente com a valorização da dignidade da pessoa humana constante no texto constitucional (art. 1.°, III, da CF/1988) e com o previsto no art. 5.°, V e X, da mesma Lei Maior, cresce na jurisprudência. Nesse sentido, cite-se precedente do Superior Tribunal de Justiça que entendeu ser imprescritível a ação indenizatória fundada em tortura cometida por policial: “O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática” (STJ, REsp 379.414/PR, rel. Min. José Delgado, DJ 17.02.2003).
Reforçando esse entendimento, colaciona-se outro julgado, do mesmo Egrégio STJ, que trata da matéria:
“Conforme restou concluído por esta Turma, por maioria, no julgamento do Recurso Especial 602.237/PB, de minha relatoria, em se tratando de lesão à integridade física, que é um direito fundamental, ou se deve entender que esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos patrimoniais reflexos e dependentes, ou a prescrição deve ser a mais ampla possível, que, na ocasião, nos termos do artigo 177 do Código Civil então vigente, era de vinte anos. Recurso especial provido, para afastar a ocorrência da prescrição quinquenal do direito aos danos morais e determinar o retorno dos autos à Corte de origem para que sejam analisadas as demais questões de mérito” (STJ, REsp 462.840/PR; Recurso Especial 2002/0107836-5, Rel. Ministro Franciulli Netto (1117), Segunda Turma, j. 02.09.2004, DJ 13.12.2004 p. 283).
Essa tendência é reconhecida pelo mesmo saudoso Ministro Franciulli Netto, em outra decisão, nos seguintes termos: “No que toca aos danos patrimoniais, os efeitos meramente patrimoniais do direito devem sempre observar o lustro prescricional do Decreto n. 20.910/32, pois não faz sentido que o erário público fique sempre com a espada de Dâmocles sobre a cabeça e sujeito a indenizações ou pagamentos de qualquer outra espécie por prazo demasiadamente longo. Daí por que, quando se reconhece direito deste jaez, ressalva-se que quaisquer parcelas condenatórias referentes aos danos patrimoniais só deverão correr nos cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação. Mas, para aforar esta, em se tratando de direitos fundamentais, das duas uma, ou deve a ação ser tida como imprescritível ou, quando menos, ser observado o prazo comum prescricional do direito civil, a menos que se queira fazer tábula rasa do novo Estado de Direito inaugurado, notadamente, a partir da atual Constituição Federal” (STJ, REsp 602.237/PB; Recurso Especial 2003/0191209-6 Rel. Ministro Franciulli Netto, Segunda Turma, j. 05.08.2004, DJ 28.03.2005, p. 245).
Mais recentemente, o mesmo Superior Tribunal de Justiça associou expressamente e mais uma vez a imprescritibilidade da demanda à proteção da dignidade humana, em caso relacionado com a repressão do período militar. A ementa é longa, mas merece ser transcrita e lida:
“Prescrição. Ação. Tortura. Regime militar. Discutiu-se acerca da prescritibilidade da ação tendente a reparar a violação dos direitos humanos ou dos direitos fundamentais da pessoa humana (indenização lastreada no art. 8.°, § 3.°, do ADCT da CF/1988) causada pela prisão e tortura por delito de opinião durante o regime militar de exceção, se aplicável o prazo prescricional quinquenal do art. 1.° do Dec. 20.910/1932, tal como entendeu o juízo singular. Quanto a isso, ao prosseguir o julgamento, a Turma, por maioria, firmou que a proteção da dignidade da pessoa humana (direito inato, universal, absoluto, inalienável e imprescritível, conforme a doutrina), como corroborado pelas cláusulas pétreas constitucionais, perdura enquanto subsistente a própria República Federativa, pois se cuida de seu fundamento, de um de seus pilares, e, como tal, não há que se falar em prescrição da pretensão tendente a implementá-la, quanto mais se a Constituição Federal não estipulou lapso prescricional ao direito de agir correspondente àquele direito à dignidade. Asseverou que o art. 14 da Lei 9.140/1995 previu ação condenatória correspondente a essas violações da dignidade humana durante o período de supressão das liberdades públicas, mas não previu prazo prescricional para o caso. Assim, concluiu que a lex specialis convive com a lex generalis, arredada a aplicação analógica do Código Civil ou do Decreto 20.910/1932 ao caso. Por fim, determinou o retorno dos autos à origem para que se dê prosseguimento ao feito, obstado pela decretação da prescrição. Precedentes citados do STF: HC 70.389-SP, DJ 10.08.2001; HC 80.031-RS, DJ 14.12.2001; do STJ: REsp 529.804-PR, DJ 24.05.2004; REsp 449.000-PE, DJ 03.06.2003, e REsp 379.414-PR, DJ 17.02.2003” (STJ, REsp 816.209-RJ, Rel. Min. Luiz Fux, j. 10.04.2007, Informativo STJ 316, 2 a 13 de março de 2007).
Mas há um segundo posicionamento, pelo qual o direito é imprescritível, mas a pretensão ou ação prescreve, no prazo assinalado pela lei. Entre aqueles que defendem essa teoria está Carlos Roberto Gonçalves, para quem a pretensão à reparação ao dano moral decorrente de lesão a direito da personalidade “está sujeita aos prazos prescricionais estabelecidos em lei, por ter caráter patrimonial” (Direito civil..., 2003, v. I, p. 158). Lembra o doutrinador que esse é o posicionamento que tem prevalecido na jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, o que realmente é um fato, infelizmente.
Entretanto, a este autor parece que há uma tendência de se seguir o caminho da imprescritibilidade em casos tais, mesmo no STJ. Como adepto do Direito Civil Constitucional, o desejo é para que essa tendência se confirme nos próximos anos.
A encerrar a análise das principais características dos direitos da personalidade, não se pode afastar a impenhorabilidade desses direitos.
Desse modo, tais direitos não podem sofrer constrição judicial, visando à satisfação de uma dívida, seja ela de qualquer natureza. Assevera Luiz Edson Fachin que “jurisprudência e legislação vão, progressivamente, reconhecendo que a base dos valores nucleares do sistema jurídico suscita soluções diferenciadas no tratamento do acervo patrimonial. A noção de impenhorabilidade é um desses traços contemporâneos. Sem invalidar o legítimo interesse dos credores, a impenhorabilidade desloca do campo dos bens a tutela jurídica, direcionando-a para a pessoa do devedor, preenchidas as condições prévias necessárias” (Estatuto jurídico..., 2001, p. 220).
Nesse brilhante trabalho, sobre o patrimônio mínimo, que será objeto de tratamento no capítulo de estudo dos bens (Capítulo 5), Fachin fornece ao estudioso do direito uma nova dimensão do conceito de patrimônio, seguindo tendência de valorização da pessoa, de personalização do direito privado, diante da despatrimonialização do direito civil.
Desse modo, a impenhorabilidade sempre esteve associada aos direitos da personalidade, sendo afastada qualquer situação que coloque em risco a proteção da pessoa. É imperioso lembrar, nesse sentido, que os alimentos e os instrumentos de trabalho são considerados impenhoráveis, sem prejuízo do rol que consta do art. 649 do CPC. Esse dispositivo foi recentemente alterado pela Lei 11.382/2006. É a sua atual redação:
“Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:
I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II – os móveis, pertences e utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;
III – os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;
IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3.° deste artigo;
V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício de qualquer profissão;
VI – o seguro de vida;
VII – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;
VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;
IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;
X – até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, a quantia depositada em caderneta de poupança”.
No que concerne à última previsão, de que não se pode penhorar valor depositado em caderneta de poupança de até quarenta salários mínimos, a este parece que o intuito foi justamente assegurar à pessoa o mínimo patrimonial ou existencial, para que tenha uma vida digna.
Também a impenhorabilidade do bem de família, prevista nos arts. 1.711 a 1.722 do CC e na Lei 8.009/1990, representa a transposição do direito pessoal e fundamental à moradia – reconhecido no art. 6.° da CF/1988 –, para o campo patrimonial.
De acordo com o magistério de Maria Helena Diniz, os direitos da personalidade são “necessários e inexpropriáveis pois, por serem inatos, adquiridos no instante da concepção, não podem ser retirados da pessoa enquanto ela viver por dizerem respeito à qualidade humana. Daí serem vitalícios; terminam, em regra, com o óbito do seu titular, por serem indispensáveis enquanto viver, mas tal aniquilamento não é completo, uma vez que certos direitos sobrevivem” (Curso de direito civil..., 2002, v. 1, p. 120). Sendo inexpropriáveis, não podem ser objeto de arrematação, adjudicação pelo credor ou desapropriação pelo Estado. Nesse sentido, cite-se mais uma vez o Código de Processo Civil que em seu art. 648 preleciona: “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis”, caso dos direitos aqui estudados.
Adquirindo a personalidade – que consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa, sendo a aptidão para deter direitos e assumir deveres –, a pessoa humana ganha a possibilidade de defender o que lhe é próprio, como sua vida, sua integridade físico-psíquica, seu próprio corpo, sua carga intelectual, sua moral, sua honra subjetiva ou objetiva, sua imagem, sua intimidade.
Desse modo, não se pode esquecer que os direitos da personalidade são os relacionados com a dignidade da pessoa humana e com as três grandes gerações ou dimensões de direitos decorrentes da Revolução Francesa, a seguir expostas:
• Direitos de primeira geração ou dimensão: princípio da liberdade.
• Direitos de segunda geração ou dimensão: princípio da igualdade em sentido amplo (lato sensu) ou da isonomia.
Nunca é demais repetir que dentro desse princípio maior, da isonomia, está inserido o princípio da especialidade. O princípio da isonomia ou igualdade lato sensu, é consubstanciado na seguinte oração, atribuída a Ruy Barbosa: A lei deve tratar de maneira igual os iguais (princípio da igualdade stricto sensu), e de maneira desigual os desiguais (princípio da especialidade).
• Direitos de terceira geração ou dimensão: princípio da fraternidade. Surgem os direitos relacionados com a pacificação social, os direitos do consumidor, o direito ambiental e os direitos do trabalhador.
Pontue-se que a referida divisão das gerações de direitos foi idealizada pelo jurista tcheco Karel Vasak, em 1979, em exposição feita em aula inaugural no Instituto Internacional dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, França.
Pelo que foi demonstrado, percebe-se o porquê de se afirmar que os direitos da personalidade são a herança da Grande Revolução (Revolução Francesa). À medida que o ser humano evolui, vão se desdobrando as gerações de direitos. Muitos doutrinadores, por outro lado, preferem utilizar a expressão dimensão em vez de geração, eis que esta última expressão dá a ideia de que tais direitos surgiram de forma sucessiva, o que não é verdade.
Hoje até se concebem os direitos de quarta geração ou quarta dimensão, relacionados com o patrimônio genético do indivíduo, os números de identificação do DNA da pessoa natural. Dessa forma, a pessoa tem o direito de não revelar tais números, em caso de eventual investigação de paternidade, não cabendo condução coercitiva para tal fim. Trata-se do direito fundamental à intimidade genética.
Justamente com base nesses direitos de quarta geração, dimensão ou era é que a professora Silmara Juny Chinellato, da Universidade de São Paulo, propõe a possibilidade de o nascituro ser adotado, o que consta no antigo Projeto 6.960/2002, atual PL 699/2011 (Adoção de nascituro..., Questões controvertidas..., 2003, p. 355 a 372).
Também já afirma a doutrina existirem os direitos de quinta geração ou quinta dimensão, relacionados com a proteção do ambiente ou intimidade virtual, existente no âmbito da Internet e do mundo cibernético. Cite-se o direito ao esquecimento como verdadeiro direito da personalidade, tema antes abordado no presente capítulo.
Igualmente a ilustrar, no volume que trata da Responsabilidade Civil (Volume 2), estão comentados conceitos relacionados com o direito eletrônico ou digital e a proteção de direitos da personalidade, mais especificamente o enquadramento do SPAM, envio de e-mail indesejado, como abuso de direito (art. 187 do CC).
Em continuidade, no volume de Direito de Família (Volume 5), discorremos sobre a infidelidade virtual, sem que sequer haja contato sexual.
No volume dos Contratos (Volume 3) estudamos a formação do contrato pela via eletrônica, pela Internet (contratos eletrônicos ou digitais).
Esses temas são essencialmente de Direito Privado e, portanto, devem ser estudados pela civilística nacional. Representam assuntos contemporâneos, da pós-modernidade, inimagináveis juridicamente até pouco tempo atrás.
Os direitos da personalidade estão previstos no Capítulo II do Título I do Código Civil de 2002, nos arts. 11 a 21, que traçam as diretrizes básicas para a aplicação da defesa da personalidade. Não obstante o Código ter feito referência a apenas três características desses direitos, a doutrina entende que a melhor interpretação é a de que foram abarcadas todas as características inerentes aos direitos da personalidade outrora analisadas, ou seja, são direitos absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, impenhoráveis, inexpropriáveis e ilimitados. Mesmo assim, esse rol não é taxativo, diante da cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, concebida por Pietro Perlingieri, Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes, entre outros.
Não são somente as pessoas naturais – expressão mais adequada do que pessoas físicas – possuem direitos da personalidade. A pessoa jurídica possui bens patrimoniais corpóreos e incorpóreos, além de bens extrapatrimoniais. E são justamente esses bens extrapatrimoniais os direitos da personalidade da pessoa jurídica. Essa visão baseia-se no fato de que, para a ciência do direito, a noção de pessoa é, sobretudo, uma noção jurídica e não filosófica ou biológica. Ademais, o art. 52 do CC dispõe que “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”, confirmando o entendimento consubstanciado anteriormente na Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça pelo qual a pessoa jurídica pode sofrer dano moral.
Por razões óbvias, esse dano moral somente pode atingir a honra objetiva da pessoa jurídica, a sua reputação. Não há que se falar em lesão à honra subjetiva, pois a pessoa jurídica não tem sentimentos. Conforme se extrai do intelecto de Adriano De Cupis, “A tutela da honra também existe para as pessoas jurídicas. Embora não possam ter o ‘sentimento’ da própria dignidade, esta pode sempre refletir-se na consideração dos outros. O bem da honra configura-se, portanto, também relativamente a elas” (DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade..., 1961, p. 111).
Apesar do entendimento sumulado de que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral, Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes entendem ser melhor utilizar a expressão danos institucionais, “conceituados como aqueles que, diferentemente dos danos patrimoniais ou morais, atingem a pessoa jurídica em sua credibilidade ou reputação” (Código Civil interpretado..., 2004, v. I, p. 135). Por isso é que na IV Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado n. 268 quanto ao art. 52 do CC, estabelecendo que “Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”.
O enunciado doutrinário aprovado acaba contrariando o entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça, pelo qual, expressamente, a pessoa jurídica pode sofrer dano moral. O teor da súmula, e não do enunciado do Conselho da Justiça Federal, é que deve ser considerado como majoritário pela comunidade jurídica nacional.
Pois bem, a proteção dos direitos da personalidade pode se dar tanto pelo âmbito civil quanto pelo âmbito penal, dependendo de como é atacado o bem jurídico da personalidade. No que interessa ao presente estudo, a proteção civil dos direitos da personalidade se verifica pela indenizabilidade material e moral, pelo dano causado (tutela indenizatória); ou, sendo possível, por medidas preventivas visando evitar o dano (tutela inibitória).
Nos casos de reparação, o dano será material quando houver uma perda ou prejuízo decorrente de uma lesão a um bem patrimonial, isto é, houver a possibilidade de verificar economicamente o dano sofrido. Os danos materiais podem ser classificados em danos emergentes – o que a pessoa efetivamente perdeu –, e lucros cessantes – o que a pessoa razoavelmente deixou de lucrar.
Por outra via, o dano será moral quando a agressão ocorrer a um direito da personalidade e não houver a possibilidade de verificação do conteúdo econômico dessa lesão. Nossa atual jurisprudência vem apontando outras modalidades de danos, caso do dano estético. O Superior Tribunal de Justiça acabou consolidando a possibilidade de cumulação de danos materiais, morais e estéticos, conforme a sua recente Súmula 387, de setembro de 2009 (“É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral”). Tal tendência é justamente o reconhecimento de novos danos, como está aprofundado no Volume 2 da presente coleção, onde estão tratados os dano moral coletivo, o dano social ou difuso e o dano por perda de uma chance.
Nesse contexto, a lesão de um bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a intimidade, a dignidade, a imagem, o bom nome, entre outros, e que acarrete ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação, é reparável mediante a indenização por um dano moral que é, nos dizeres de Rubens Limongi França, “aquele que, direta ou indiretamente, a pessoa, física ou jurídica, bem assim a coletividade, sofre no aspecto não econômico dos seus bens jurídicos” (RT 631/31).
O art. 12, caput, do CC, consagra a tutela geral da personalidade, trazendo os princípios da prevenção e da reparação integral de danos, que podem ser exercidos por meios judiciais e extrajudiciais. É a redação do dispositivo: “Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”.
No que concerne à prevenção, prevê o Enunciado n. 140 do CJF, aprovado na III Jornada de Direito Civil (dez. 2004), que “a primeira parte do art. 12 do Código Civil refere-se a técnicas de tutela específica, aplicáveis de ofício, enunciadas no art. 461 do Código de Processo Civil, devendo ser interpretada como resultado extensivo”. Desse modo, cabe multa diária, ou astreintes, em ação cujo objeto é uma obrigação de fazer ou não fazer, em prol dos direitos da personalidade. Essa medida será concedida de ofício pelo juiz (ex officio), justamente porque a proteção da pessoa envolve ordem pública. Há aqui um belo exemplo de aplicação do Direito Processual Constitucional, que também visa à proteção da dignidade humana na tutela instrumental. Anote-se que essa linha processual, quiçá, será adotada pelo projeto de Novo Código de Processo Civil, em trâmite no Congresso Nacional. Em boa hora, o art. 1.° da proposta legislativa enuncia expressamente que o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil.
A título de exemplo, se uma empresa lança um álbum de figurinhas de um jogador de futebol, sem a devida autorização, caberá uma ação específica tanto para vedar novas veiculações quanto para retirar o material de circulação (obrigação de fazer e de não fazer). Nessa ação caberá a fixação de uma multa diária, ou de uma multa única, bem como a busca e apreensão dos álbuns. Tudo isso, repita-se, de ofício pelo juiz.
No caso de lesão a tais direitos, continua merecendo aplicação a Súmula 37 do STJ, do ano de 1992, com a cumulação de pedido de reparação por danos materiais e morais. Em outras palavras, aquela Corte Superior admite, há muito tempo, a cumulação dupla de danos reparáveis.
Entretanto, conforme foi dito, essa súmula merece uma nova leitura, eis que também são cumuláveis os danos estéticos (cumulação tripla), destacados pela atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça como uma nova modalidade de prejuízo (Súmula 387). Entre os precedentes mais antigos que geraram a súmula, destaque-se: “Dano moral e estético. Cumulação. 1. Conforme a jurisprudência da Corte, é possível cumular as parcelas relativas a danos morais e estéticos decorrentes do mesmo fato. 2. Agravo desprovido” (STJ, REsp 473.848/RS, j. 15.05.2003, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 23.06.2003).
O parágrafo único do mesmo art. 12 do CC acaba por reconhecer direitos da personalidade ao morto, cabendo legitimidade para ingressar com a ação correspondente aos lesados indiretos: cônjuge, ascendentes, descendentes e colaterais até quarto grau. Em casos tais, tem-se aquilo que a doutrina denomina dano indireto ou dano em ricochete. Conforme enunciado aprovado na V Jornada de Direito Civil, de autoria do Professor Gustavo Tepedino, tais legitimados agem por direito próprio em casos tais (Enunciado n. 400).
Injustificadamente, o art. 12, parágrafo único, do CC não faz referência ao companheiro ou convivente, que ali também deve ser incluído por aplicação analógica do art. 226, § 3.°, da CF/1988. Justamente por isso, o Enunciado n. 275 do CJF/STJ, da IV Jornada de Direito Civil, prevê que “O rol dos legitimados de que tratam os arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, do Código Civil, também compreende o companheiro”.
Pelo que consta do próprio enunciado, frise-se que, no caso específico de lesão à imagem do morto, o art. 20, parágrafo único, do CC também atribui legitimidade aos lesados indiretos, mas apenas faz menção ao cônjuge, aos ascendentes e aos descendentes, também devendo ser incluído o companheiro pelas razões antes demonstradas.
De fato, pelo que consta expressamente da lei, os colaterais até quarto grau não teriam legitimação para a defesa de tais direitos, conclusão a que chegou o Enunciado n. 5 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, cujo teor segue, de forma destacada:
“Arts. 12 e 20: 1) as disposições do art. 12 têm caráter geral e aplicam-se inclusive às situações previstas no art. 20, excepcionados os casos expressos de legitimidade para requerer as medidas nele estabelecidas; 2) as disposições do art. 20 do novo Código Civil têm a finalidade específica de regrar a projeção dos bens personalíssimos nas situações nele enumeradas. Com exceção dos casos expressos de legitimação que se conformem com a tipificação preconizada nessa norma, a ela podem ser aplicadas subsidiariamente as regras instituídas no art. 12”.
Pelo teor do último enunciado transcrito, que consubstancia o entendimento majoritário da doutrina, pode ser concebido o seguinte quadro esquemático:
Lesão à personalidade do morto (art. 12, parágrafo único, do CC) |
Lesão à imagem do morto (art. 20, parágrafo único, do CC) |
São legitimados, pela atual redação do Código Civil, os ascendentes, descendentes, o cônjuge e os colaterais até quarto grau (irmãos, tios, sobrinhos e primos). Não há menção ao companheiro, injustificadamente. |
São legitimados, pela atual redação do Código Civil, os ascendentes, os descendentes e o cônjuge. |
A questão é controvertida, pois afinal de contas o conceito de imagem (incluindo a imagem-retrato e a imagem-atributo) encontra-se muito ampliado. Nesse contexto, haverá enormes dificuldades em enquadrar a situação concreta no art. 12 ou no art. 20 do Código Civil. Não obstante, pode-se até entender que os dispositivos trazem apenas relações exemplificativas dos legitimados extraordinariamente para os casos de lesão à personalidade do morto. Assim, é forçoso concluir que os arts. 12, parágrafo único, e 20, parágrafo único, comunicam-se entre si. Comentando o último comando, leciona Silmara Chinellato, à quem se filia, que “anoto que a legitimação aqui é menos extensa do que naquele parágrafo, já que omite os colaterais. É sustentável admitir a legitimação também a eles, bem como aos companheiros, uma vez que o art. 12 se refere genericamente à tutela dos direitos da personalidade, entre os quais se incluem os previstos pelo art. 20” (CHINELLATO, Silmara Juny (coord.). Código Civil..., 3. ed., 2010, p. 46-47).
Esse último entendimento afasta a rigidez do quadro exposto. Adotando essa ideia de flexibilização, independente da ordem de vocação hereditária, transcreve-se julgado do Tribunal Mineiro, que analisou lesão à personalidade do morto pela violação de sepultura:
“Direito administrativo. Apelações. Violação de sepultura em cemitério municipal. Violação de urna funerária. Responsabilidade objetiva do Estado. Situação causadora de dano moral. Irmão do morto. Legitimidade. Dano moral de natureza gravíssima. Majoração da indenização. Possibilidade. Multa diária. Previsão legal. Juros. Percentual. Honorários advocatícios. Redução. Possibilidade. Recursos parcialmente providos. O artigo 12, parágrafo único, do Código Civil, autoriza qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau, a pleitear indenização por danos morais, quando se tratar de reflexos de direitos da personalidade do morto, sendo que o dispositivo não condiciona o ajuizamento da ação à observância da ordem de vocação hereditária a violação de sepultura e de urna funerária configura dano moral de natureza grave, de forma que, se as violações ocorreram por ordem de servidor público municipal, nas dependências de cemitério público municipal, é certo que o município responde objetivamente pelos danos morais causados ao irmão do morto” (TJMG, Apelação cível 1.0699.07.071912-4/0021, Ubá, 4.ª Câmara Cível, Rel. Des. Moreira Diniz, j. 05.02.2009, DJEMG 27.02.2009).
Ato contínuo, por bem, adotando a flexibilidade da ordem prevista nos comandos, na V Jornada de Direito Civil (novembro de 2011), aprovou-se o enunciado proposto pelo Professor André Borges de Carvalho Barros, com o seguinte teor: “As medidas previstas no artigo 12, parágrafo único, do Código Civil, podem ser invocadas por qualquer uma das pessoas ali mencionadas de forma concorrente e autônoma” (Enunciado n. 398).
Partindo para a prática, um dos julgados mais conhecidos a respeito da tutela da personalidade do morto é o relativo ao livro Estrela solitária – um brasileiro chamado Garrincha, em que se tutelou os direitos das filhas do jogador, reparando-as por danos morais sofridos em decorrência de afirmações feitas na publicação. Vejamos a ementa:
“Civil. Danos morais e materiais. Direito à imagem e à honra de pai falecido. Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Segundo recurso especial das autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido” (STJ, REsp 521.697/RJ, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, j. 16.02.2006, DJ 20.03.2006, p. 276).
Mais recentemente, em 10 de abril de 2012, sentença de primeira instância da 7.ª Vara Cível de Aracaju, Sergipe, proibiu a vinculação do livro Lampião – o mata sete, estudo histórico realizado pelo advogado Pedro de Moraes que afirma que Lampião era homossexual e constantemente traído por sua mulher, Maria Bonita. A ação foi proposta pela única filha do casal, Expedida Ferreira Nunes, concluindo o magistrado Aldo Albuquerque de Melo que, “conjugando o art. 5.°, X, da Constituição Federal com o art. 20, parágrafo único do Código Civil, verifica-se facilmente a ilicitude da conduta do requerido em pretender divulgar e publicar uma biografia de Lampião, sem autorização dos titulares do direito de imagem, no caso, a requerente” (processo n. 201110701579). Como as figuras relatadas no livro são históricas, fica em xeque a ponderação realizada pelo julgador, uma vez que há um interesse coletivo no estudo realizado pelo advogado e escritor. Com o devido respeito, a priori, o presente autor não se filia à decisão prolatada.
O art. 13 do CC/2002 e seu parágrafo único preveem o direito de disposição de partes separadas do próprio corpo em vida para fins de transplante, ao prescrever que, “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial”.
O dispositivo em questão serve como uma luva para os casos de correção ou adequação de sexo do transexual. Como se sabe, o transexualismo é reconhecido por entidades médicas como sendo uma patologia, pois a pessoa tem “um desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ao autoextermínio” (Resolução 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina). O transexual constitui uma forma de wanna be, pois a pessoa quer ser do outro sexo, havendo choques psíquicos graves atormentando-a. A Resolução do CFM não considera ilícita a realização de cirurgias que visam à adequação do sexo, geralmente do masculino para o feminino, autorizando a sua realização em nosso País.
Na verdade, quanto à eventual adequação de sexo do indivíduo, à luz do artigo do Código Civil transcrito, podem ser feitas duas interpretações. A primeira, mais liberal, permite a mudança ou adequação do sexo masculino para o feminino, eis que muitas vezes a pessoa mantém os referidos choques psicológicos graves, havendo a necessidade de alteração, até para evitar que a mesma se suicide (ALVES, Jones Figueirêdo; Delgado, Mário Luiz. Código Civil anotado..., 2005, p. 27).
Entretanto, a segunda parte do dispositivo veda a disposição do próprio corpo se tal fato contrariar os bons costumes, conceito legal indeterminado. De acordo com uma visão mais conservadora, a mudança de sexo estaria proibida. Assim entende, por exemplo, Inácio de Carvalho Neto (Curso de direito civil..., v. I, p. 134).
Relativamente a tal discussão, este autor é adepto da primeira corrente, inclusive pelo reconhecimento, de acordo com o Enunciado n. 6 do CJF/STJ também da I Jornada, que o bem-estar mencionado no dispositivo pode ser físico ou psicológico do disponente. Mais especificamente, na IV Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado n. 276, prevendo que:
“O art. 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil”.
Essa alteração do prenome e do registro civil é reconhecida pela jurisprudência estadual de forma ampla, em prol da proteção da dignidade humana. Por todos esses julgados, podem ser transcritos os seguintes, do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Retificação de registro civil (assento de nascimento) – Transexualismo (ou disforia de gênero) – Sentença que autorizou a modificação do prenome masculino para feminino – Controvérsia adstrita à alteração do sexo jurídico no assento de nascimento – Admissibilidade – Cirurgia autorizada diante da necessidade de adequação do sexo morfológico e psicológico – Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a negativa de alteração do sexo originalmente inscrito na certidão – Evidente, ainda, o constrangimento daquele que possui o prenome ‘VANESSA’, mas que consta no mesmo registro como sendo do sexo masculino – Ausência de prejuízos a terceiros – Sentença que determinou averbar nota a respeito do registro anterior – Decisão mantida – Recurso improvido” (TJSP, Ap. Cív. com Revisão n. 439.257-4/3-00, Relator Salles Rossi, data do registro: 10.05.2007).
“Registro civil. Retificação. Assento de nascimento. Transexual. Alteração na indicação do sexo. Deferimento. Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar. Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento. Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a consequente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental. Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual. Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos arts. 1.°, III, e 3.°, IV, da CF. Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo” (TJSP, Ap. Cív. 209.101-4, Espírito Santo do Pinhal, 1.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Elliot Akel, j. 09.04.2002 – v.u.).
A questão se consolidou de tal forma até chegar ao Superior Tribunal de Justiça, que em 2009 passou a entender na mesma linha. Assim, do Informativo n. 415 daquele Tribunal, colaciona-se, mencionando precedente anterior, publicado no seu Informativo n. 411:
“Registro civil. Retificação. Mudança. Sexo. A questão posta no REsp cinge-se à discussão sobre a possibilidade de retificar registro civil no que concerne a prenome e a sexo, tendo em vista a realização de cirurgia de transgenitalização. A Turma entendeu que, no caso, o transexual operado, conforme laudo médico anexado aos autos, convicto de pertencer ao sexo feminino, portando-se e vestindo-se como tal, fica exposto a situações vexatórias ao ser chamado em público pelo nome masculino, visto que a intervenção cirúrgica, por si só, não é capaz de evitar constrangimentos. Assim, acentuou que a interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei de Registros Públicos confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização judicial a fim de alterar seu prenome, substituindo-o pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive, ou seja, o pretendido nome feminino. Ressaltou-se que não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial, como fez o Tribunal a quo, significa postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade. Afirmou-se que se deter o julgador a uma codificação generalista, padronizada, implica retirar-lhe a possibilidade de dirimir a controvérsia de forma satisfatória e justa, condicionando-a a uma atuação judicante que não se apresenta como correta para promover a solução do caso concreto, quando indubitável que, mesmo inexistente um expresso preceito legal sobre ele, há que suprir as lacunas por meio dos processos de integração normativa, pois, atuando o juiz supplendi causa, deve adotar a decisão que melhor se coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das pessoas. Nesse contexto, tendo em vista os direitos e garantias fundamentais expressos da Constituição de 1988, especialmente os princípios da personalidade e da dignidade da pessoa humana, e levando-se em consideração o disposto nos arts. 4.° e 5.° da Lei de Introdução, decidiu-se autorizar a mudança de sexo de masculino para feminino, que consta do registro de nascimento, adequando-se documentos, logo facilitando a inserção social e profissional. Destacou-se que os documentos públicos devem ser fiéis aos fatos da vida, além do que deve haver segurança nos registros públicos. Dessa forma, no livro cartorário, à margem do registro das retificações de prenome e de sexo do requerente, deve ficar averbado que as modificações feitas decorreram de sentença judicial em ação de retificação de registro civil. Todavia, tal averbação deve constar apenas do livro de registros, não devendo constar, nas certidões do registro público competente, nenhuma referência de que a aludida alteração é oriunda de decisão judicial, tampouco de que ocorreu por motivo de cirurgia de mudança de sexo, evitando, assim, a exposição do recorrente a situações constrangedoras e discriminatórias” (STJ, REsp 737.993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 10.11.2009. Ver Informativo n. 411).
Na verdade a adequação de sexo para o transexual é uma verdadeira necessidade, não um mero capricho ou anseio pessoal. Trata-se da cura para uma doença, para uma patologia; uma adequação social. Por isso, na visão civil-constitucional, que busca a preservação da dignidade humana, não pode ser afastada essa adequação (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade..., 2005, p. 190 a 192). Insta lembrar que a situação do transexual não se confunde com a do homossexual (que tem atração sexual por pessoas do mesmo sexo) ou do bissexual (que tem atração por pessoas do mesmo sexo e do sexo oposto, de forma concomitante). Também a situação do hermafrodita, aquele que tem dupla manifestação sexual, deve ser analisada à parte.
Ainda sobre o art. 13 do CC/2002, na V Jornada de Direito Civil, de 2011, foi aprovado enunciado doutrinário com teor bem interessante, dispondo que não contraria os bons costumes a cessão gratuita de direitos de uso de material biológico para fins de pesquisa científica. Isso, desde que a manifestação de vontade tenha sido livre e esclarecida e puder ser revogada a qualquer tempo, conforme as normas éticas que regem a pesquisa científica e o respeito aos direitos fundamentais (Enunciado n. 401).
Na VI Jornada de Direito Civil, evento promovido em 2013, o comando voltou a ser debatido, aprovando-se o Enunciado n. 532, in verbis: “É permitida a disposição gratuita do próprio corpo com objetivos exclusivamente científicos, nos termos dos arts. 11 e 13 do Código Civil”. O enunciado doutrinário visa a possibilitar pesquisas com seres humanos, sendo as suas justificativas: “pesquisas com seres humanos vivos são realizadas todos os dias, sem as quais não seria possível o desenvolvimento da medicina e de áreas afins. A Resolução CNS n. 196/1996, em harmonia com o Código de Nuremberg e com a Declaração de Helsinque, dispõe que pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil somente podem ser realizadas mediante aprovação prévia de um Comitê de Ética em Pesquisa – CEP, de composição multiprofissional, e com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE pelo participante da pesquisa, no qual devem constar informações claras e relevantes acerca do objeto da pesquisa, seus benefícios e riscos, a gratuidade pela participação, a garantia de reparação dos danos causados na sua execução e a faculdade de retirada imotivada do consentimento a qualquer tempo sem prejuízo para sua pessoa”.
Em suma, a viabilidade do reconhecimento legal e jurídico de tais pesquisas com seres humanos estaria fundada nos arts. 11 e 13 do Código Civil de 2002, sempre de forma gratuita.
De acordo com o art. 14 da atual codificação é possível, com objetivo científico ou altruístico (doação de órgãos), a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte, podendo essa disposição ser revogada a qualquer momento.
A retirada post mortem dos órgãos deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica e depende de autorização de parente maior, da linha reta ou colateral até o 2.° grau, ou do cônjuge sobrevivente, mediante documento escrito perante duas testemunhas (art. 4.° da Lei 9.434/1997 e Lei 10.211/2001). A primeira norma, em sintonia com o que consta do art. 13, parágrafo único, do atual Código Civil, regulamenta questões relacionadas com os transplantes de órgãos.
Quanto a essa retirada, interessante ainda dizer que a nossa legislação adota o princípio do consenso afirmativo, no sentido de que é necessária a autorização dos familiares do disponente. A Lei 10.211/2001 veio justamente a afastar a presunção que existia de que todas as pessoas eram doadores potenciais, o que era duramente criticado pela comunidade médica e jurídica.
Contudo, para deixar claro que a decisão de disposição é um ato personalíssimo do disponente, na IV Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado n. 277 do CJF/STJ, prevendo que: “O art. 14 do Código Civil, ao afirmar a validade da disposição gratuita do próprio corpo, com objetivo científico ou altruístico, para depois da morte, determinou que a manifestação expressa do doador de órgãos em vida prevalece sobre a vontade dos familiares, portanto, a aplicação do art. 4.° da Lei 9.434/1997 ficou restrita à hipótese de silêncio do potencial doador”. Realmente, o enunciado doutrinário é perfeito. O ato é pessoal do doador, mantendo relação com a liberdade, com a sua autonomia privada. Caso se entendesse o contrário, toda a legislação quanto ao tema seria inconstitucional, por lesão à liberdade individual, uma das especializações da dignidade humana (art. 1.°, inc. III, da CF/1988).
No que diz respeito à revogação dessa autorização, na V Jornada de Direito Civil aprovou-se enunciado elucidativo a respeito dos incapazes, a saber: “O art. 14, parágrafo único, do Código Civil, fundado no consentimento informado, não dispensa o consentimento dos adolescentes para a doação de medula óssea prevista no art. 9.°, § 6.°, da Lei n.° 9.434/97 por aplicação analógica dos arts. 28, § 2.° (alterado pela Lei 12.010/2009), e 45, § 2.°, do ECA” (Enunciado n. 402). Para os fins de esclarecimento, dispõe o art. 9.°, § 6.°, da Lei 9.434/1997 que “O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde”.
Superadas tais questões, como foi exposto, o art. 15 do atual Código consagra os direitos do paciente, valorizando o princípio da beneficência e da não maleficência, pelo qual se deve buscar sempre o melhor para aquele que está sob cuidados médicos ou de outros profissionais de saúde.
Assinale-se que os profissionais da área de saúde assumem, em regra, uma obrigação de meio, o que justifica a sua responsabilização mediante culpa (responsabilidade subjetiva), conforme o art. 951 do CC e o art. 14, § 4.°, do CDC. Entretanto, alguns profissionais dessa área, caso do médico cirurgião plástico estético, assumem obrigação de resultado, sendo a sua responsabilidade independente de culpa (responsabilidade objetiva), conforme o entendimento constante em alguns julgados (STJ, REsp 81.101/PR, Rel. Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, j. 13.04.1999, DJ 31.05.1999, p. 140). Todavia, esclareça-se, há quem entenda que, em casos tais, a obrigação de resultado gera culpa presumida, tema que está aprofundado no Volume 2 da presente coleção.
Ainda no que diz respeito ao art. 15 da atual codificação, na VI Jornada de Direito Civil (2013), foi aprovado o Enunciado n. 533, segundo o qual “O paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos cirúrgicos que não possam ser interrompidos”.
De acordo com as justificativas do enunciado doutrinário, “o crescente reconhecimento da autonomia da vontade e da autodeterminação dos pacientes nos processos de tomada de decisão sobre questões envolvidas em seus tratamentos de saúde é uma das marcas do final do século XX. Essas mudanças vêm-se consolidando até os dias de hoje. Inúmeras manifestações nesse sentido podem ser identificadas, por exemplo, a modificação do Código de Ética Médica e a aprovação da resolução do Conselho Federal de Medicina sobre diretivas antecipadas de vontade. O reconhecimento da autonomia do paciente repercute social e juridicamente nas relações entre médico e paciente, médico e família do paciente e médico e equipe assistencial. O art. 15 deve ser interpretado na perspectiva do exercício pleno dos direitos da personalidade, especificamente no exercício da autonomia da vontade. O ‘risco de vida’ será inerente a qualquer tratamento médico, em maior ou menor grau de frequência. Por essa razão, não deve ser o elemento complementar do suporte fático para a interpretação do referido artigo. Outro ponto relativo indiretamente à interpretação do art. 15 é a verificação de como o processo de consentimento informado deve ser promovido para adequada informação do paciente. O processo de consentimento pressupõe o compartilhamento efetivo de informações e a corresponsabilidade na tomada de decisão”.
O enunciado acaba por propiciar, por exemplo, a elaboração do testamento vital ou biológico, conforme antes exposto. Sendo assim, em regra, filia-se ao teor da ementa doutrinária transcrita, com a ressalva de que a autonomia privada do paciente deve ser ponderada com outros direitos e valores. Isso deve ocorrer, por exemplo, nos casos de não submissão do paciente a tratamento médico por razões religiosas, tema aqui também outrora analisado.
Os arts. 16 a 19 do CC/2002 tutelam o direito ao nome, sinal ou pseudônimo que representa uma pessoa natural perante a sociedade, contra atentado de terceiros, principalmente aqueles que expõem o sujeito ao desprezo público, ao ridículo, acarretando dano moral ou patrimonial. Sendo o nome reconhecido como um direito da personalidade, as normas que o protegem também são de ordem pública.
Pelo art. 16 todos os elementos que fazem parte do nome estão protegidos:
– o prenome, nome próprio da pessoa (v.g. Flávio, Enzo, Laís);
– o sobrenome, nome, apelido ou patronímico, nome de família (v. g. Monteiro, Tartuce, Silva);
– a partícula (da, dos, de);
– o agnome, que visa perpetuar um nome anterior já existente (Júnior, Filho, Neto, Sobrinho).
A proteção de todos esses elementos consta expressamente no art. 17 pelo qual “o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda que não haja intenção difamatória”. Deve ficar claro, como bem pondera Silmara Chinellato, que a tutela do nome cabe mesmo sendo este utilizado indevidamente, sem que exponha a pessoa ao desprezo público. Por isso, a jurista considera a dicção do preceito um retrocesso, o que é seguido por este autor (CHINELLATO, Silmara Juny (coord.). Código Civil..., 3. ed., 2010, p. 44).
O nome também não pode ser utilizado, sem autorização, para fins de publicidade ou propaganda comercial (art. 18 do CC). Nos dois casos, tratados pelos arts. 17 e 18 do CC, em havendo lesão, caberá reparação civil, fundamentada nos arts. 186 e 927 da codificação privada. Sendo possível, cabem ainda medidas de prevenção do prejuízo.
Nesse sentido, dispõe o Enunciado n. 278, também da IV Jornada de Direito Civil, que “A publicidade que venha a divulgar, sem autorização, qualidades inerentes a determinada pessoa, ainda que sem mencionar seu nome, mas sendo capaz de identificá-la, constitui violação a direito da personalidade”. Para ilustrar, aplicando expressamente o enunciado doutrinário, destaque-se julgado do Tribunal Paulista, que condenou curso de línguas a indenizar o apresentador de televisão Cazé Peçanha no montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), pela utilização de sua imagem por meio de sósia: “Utilização simulada de imagem do autor em publicidade. Dano moral configurado. Adequação do valor dos danos morais” (TJSP, Apelação 994.03.015985-0, Acórdão 4402991, São Paulo, 9.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Antonio Vilenilson, j. 02.02.2010, DJESP 22.04.2010).
O art. 19 do CC/2002 trata da proteção do pseudônimo, nome atrás do qual se esconde um autor de obra artística, literária ou científica. Essa proteção não constitui novidade, pois já constava no art. 24, II, da Lei 9.610/1998, que elenca os direitos morais do autor. Aliás, prevê o art. 27 dessa lei específica que os “direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis”. Apesar da falta de previsão, deve-se concluir que a proteção constante no art. 19 do Código Civil atinge também o cognome ou alcunha, nome artístico utilizado por alguém, mesmo não constando esse no registro da pessoa. Aplicando tal premissa para uma dupla sertaneja, do Tribunal de São Paulo:
“Medida cautelar. Cautelar inominada. Utilização de nome artístico do autor em nova dupla sertaneja. Impedimento. Requisitos legais. Presença. Pseudônimo adotado para atividades lícitas que goza da mesma proteção dada ao nome. Artigo 19, do Código Civil. Recurso improvido” (TJSP, Agravo de Instrumento 4.021.314/3-00, São Paulo, 9.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Osni de Souza, j. 13.12.2005).
A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) traz tratamento específico quanto ao nome. Estabelece o art. 58 dessa lei especial que “o prenome é definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos e notórios”. A experiência demonstra, na verdade, que é mais fácil a alteração do prenome do que do sobrenome, sendo certo que o nome, com todos os seus elementos, envolve tanto preceitos de ordem pública como de ordem privada.
A alteração do nome, mediante ação específica, cuja sentença deve ser registrada no cartório de registro das pessoas naturais, pode ocorrer nos seguintes casos:
a) Substituição do nome que expõe a pessoa ao ridículo ou a embaraços, inclusive em casos de homonímias (nomes iguais). Exemplos: Jacinto Aquino Rego, Sum Tim Am, João Um Dois Três de Oliveira Quatro, Francisco de Assis Pereira (nome do Maníaco do Parque).
b) Alteração no caso de erro de grafia crasso, perceptível de imediato. Exemplos: Frávio, Orvardo, Cráudio.
c) Adequação de sexo, conforme entendimento jurisprudencial transcrito.
d) Introdução de alcunhas ou cognomes. Exemplos: Lula, Xuxa, Tiririca.
e) Introdução do nome do cônjuge ou convivente.
f) Introdução do nome do pai ou da mãe, havendo reconhecimento posterior de filho ou adoção.
g) Para tradução de nomes estrangeiros como John (João) e Bill (Guilherme).
h) Havendo coação ou ameaça decorrente da colaboração com apuração de crime (proteção de testemunhas), nos termos da Lei 9.807/1999.
i) Para inclusão do sobrenome de um familiar remoto, conforme o entendimento jurisprudencial (TJMG, Acórdão 1.0024.06.056834-2/001, Belo Horizonte, 1.ª Câmara Cível, Rel. Des. Armando Freire, j. 04.09.2007, DJMG 19.09.2007). Essa inclusão pode ser necessária para a obtenção de cidadania de outro País. Anote-se, contudo, que a questão não é pacífica na jurisprudência nacional.
j) Para inclusão do nome de família do padrasto ou madrasta por enteado ou enteada, havendo motivo ponderável para tanto e desde que haja expressa concordância dos primeiros, sem prejuízo de seus apelidos de família (art. 57, § 8.°, da Lei 6.015/1973, incluído pela Lei 11.924/2009, de autoria do falecido Deputado Clodovil Hernandes). Cumpre destacar a existência de decisões judiciais aplicando a louvável inovação (por todos: TJSP, Apelação Cível 0206401-04.2009.8.26.0006, Rel. Des. João Pazine Neto, 3.ª Câmara de Direito Privado, j. 27.08.2013; e TJSC, Acórdão 2010.020381-0, Videira, Segunda Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Nelson Schaefer Martins, j. 14.07.2011, DJSC 03.08.2011, p. 139).
Frise-se que o rol descrito é meramente ilustrativo, pois inúmeras outras situações podem surgir, visando à proteção da identidade da pessoa. A título de exemplo, cite-se o comum entendimento do Superior Tribunal de Justiça em admitir a alteração do registro de nascimento, para nele constar o nome de solteira da genitora, adotado após o divórcio. Conforme a ementa de um dos arestos, “a dificuldade de identificação em virtude de a genitora haver optado pelo nome de solteira após a separação judicial enseja a concessão de tutela judicial a fim de que o novo patronímico materno seja averbado no assento de nascimento, quando existente justo motivo e ausentes prejuízos a terceiros, ofensa à ordem pública e aos bons costumes. É inerente à dignidade da pessoa humana a necessidade de que os documentos oficiais de identificação reflitam a veracidade dos fatos da vida, de modo que, havendo lei que autoriza a averbação, no assento de nascimento do filho, do novo patronímico materno em virtude de casamento, não é razoável admitir-se óbice, consubstanciado na falta de autorização legal, para viabilizar providência idêntica, mas em situação oposta e correlata (separação e divórcio)” (STJ, REsp 1.041.751/DF, Rel. Min. Sidnei Beneti, Terceira Turma, j. 20.08.2009, DJe 03.09.2009. No mesmo sentido: REsp 1.072.402/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 04.12.2012, DJe 1.°.02.2013).
Ainda no que concerne ao nome, surge questão controvertida interessante. Isso porque o art. 56 da Lei de Registros Públicos prevê prazo de um ano, contado de quando o interessado atingir a maioridade civil, para que o nome seja alterado, desde que isso não prejudique os apelidos da família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa.
A questão é justamente saber se esse prazo ainda se aplica, eis que o nome constitui um direito da personalidade, o que geraria a imprescritibilidade da pretensão à mudança em alguns casos.
Muito acertadamente, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo pela possibilidade de se alterar o nome mesmo após esse prazo, desde haja um motivo plausível para tanto. Vejamos dois julgados nesse sentido:
“Civil. Recurso especial. Retificação de registro civil. Alteração do prenome. Presença de motivos bastantes. Possibilidade. Peculiaridades do caso concreto. Admite-se a alteração do nome civil após o decurso do prazo de um ano, contado da maioridade civil, somente por exceção e motivadamente, nos termos do art. 57, caput, da Lei 6.015/73. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, REsp 538.187/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 02.12.2004, DJ 21.02.2005 p. 170).
“Registro civil. Nome. Alteração pretendida mediante supressão dos patronímicos. Inviabilidade. Após o decurso do primeiro ano da maioridade, só se admitem modificações do nome em caráter excepcional e mediante comprovação de justo motivo, circunstâncias não configuradas no caso” (STJ, REsp 439.636/SP, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, j. 15.10.2002, DJ 17.02.2003 p. 288).
O art. 20, caput, do CC tutela o direito à imagem e os direitos a ele conexos, confirmando a previsão anterior do art. 5.°, V e X, da CF, que assegura o direito à reparação moral no caso de lesão à imagem. Destaque-se, a respeito dos danos morais, que o Superior Tribunal de Justiça editou, em novembro de 2009, a Súmula 403, prevendo que “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”. Assim, tem prevalecido a tese de que em casos tais, de uso indevido de imagem com fins econômicos, os danos morais são presumidos ou in re ipsa.
Pois bem, é a redação do dispositivo da codificação civil: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais” (art. 20, caput, do CC/2002).
Esclarecendo essa confusa redação, para a utilização da imagem de outrem é necessária autorização, sob pena de aplicação dos princípios da prevenção e da reparação integral dos danos. Mas essa autorização é dispensável se a pessoa interessar à ordem pública ou à administração da justiça, pelos exatos termos da lei.
Logicamente, o enquadramento da pessoa nessas categorias depende de apreciação pelo magistrado, caso a caso. Nota-se, no art. 20 do CC, a presença de cláusulas gerais em relação aos conceitos de necessárias à administração da justiça e manutenção da ordem pública, dentro da ideia da ontognoseologia jurídica de Miguel Reale. Nesse sentido, deverá o magistrado aplicar a norma, tendo com base fatos (repercussões sociais da pessoa) e valores (da sociedade e próprios).
Lembre-se, mais uma vez, que a imagem da pessoa pode ser classificada em imagem-retrato – a fisionomia de alguém, o que é refletido no espelho – e imagem-atributo – a soma de qualificações do ser humano, o que ele representa para a sociedade. Ambas as formas de imagem parecem estar protegidas no criticável art. 20 do CC.
Criticável, pois deve ficar claro que esse artigo não exclui o direito à informação e à liberdade da expressão, protegidos no art. 5.°, IV, IX e XIV, da CF/1988. Nesse sentido, comentam Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes que “o dispositivo há de ser interpretado sistematicamente, admitindo-se a divulgação de outro direito fundamental, especialmente o direito à informação – compreendido a liberdade de expressão e o direito a ser informado. Isto porque tal direito fundamental é também tutelado constitucionalmente, sendo essencial ao pluralismo democrático. Daqui decorre uma presunção de interesse público nas informações veiculadas pela imprensa, justificando, em princípio, a utilização da imagem alheia, mesmo na presença de finalidade comercial, que acompanha os meios de comunicação no regime capitalista” (Código Civil interpretado..., 2004, v. I, p. 53). Além disso, como relata Anderson Schreiber, há no art. 20 do Código Civil uma restrição muito rígida, com privilégio excessivo à vontade do retratado (Direitos..., 2011, p. 103).
Partilhando dessas ideias, na IV Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado n. 279 do CJF/STJ, no seguinte sentido:
“A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações”.
De acordo com o enunciado doutrinário, recomenda-se prudência na análise das questões envolvendo a divulgação de notícias sobre determinadas pessoas, sendo interessante ponderar os direitos protegidos no caso concreto (técnica de ponderação). De qualquer forma, deve-se dar prevalência à divulgação de imagens que sejam verdadeiras, desde que elas interessem à coletividade. Pode-se falar, assim, em função social da imagem.
Partindo para a prática da ponderação relativa ao dilema (direito à imagem x direito à informação), concluiu o Superior Tribunal de Justiça, em decisão publicada no seu Informativo n. 396, que “Há, na questão, um conflito de direitos constitucionalmente assegurados. A Constituição Federal assegura a todos a liberdade de pensamento (art. 5.°, IV), bem como a livre manifestação desse pensamento (art. 5.°, IX) e o acesso à informação (art. 5.°, XIV). Esses direitos salvaguardam a atividade da recorrente. No entanto, são invocados pelo recorrido os direitos à reputação, à honra e à imagem, assim como o direito à indenização pelos danos morais e materiais que lhe sejam causados (art. 5.°, X). Para a solução do conflito, cabe ao legislador e ao aplicador da lei buscar o ponto de equilíbrio no qual os dois princípios mencionados possam conviver, exercendo verdadeira função harmonizadora. (...) Na hipótese, constata-se que a reportagem da recorrente, para sustentar essa sua afirmação, trouxe ao ar elementos importantes, como o depoimento de fontes fidedignas, a saber: a prova testemunhal de quem foi à autoridade policial formalizar notícia-crime e a opinião de um procurador da República. Ademais, os autos revelam que o próprio repórter fez-se passar por agente interessado nos benefícios da atividade ilícita, obtendo gravações que efetivamente demonstravam a existência de engenho fraudatório. Não se tratava, portanto, de um mexerico, fofoca ou boato que, negligentemente, divulgava-se em cadeia nacional. Acresça-se a isso que o próprio recorrido revela que uma de suas empresas foi objeto de busca e apreensão. Ao público, foram dadas as duas versões do fato: a do acusador e a do suspeito. Os elementos que cercaram a reportagem também mostravam que havia fatos a serem investigados. O processo de divulgação de informações satisfaz o verdadeiro interesse público, devendo ser célere e eficaz, razão pela qual não se coaduna com rigorismos próprios de um procedimento judicial. Desse modo, vê-se claramente que a recorrente atuou com a diligência devida, não extrapolando os limites impostos à liberdade de informação. A suspeita que recaía sobre o recorrido, por mais dolorosa que lhe seja, de fato, existia e era, à época, fidedigna. Se hoje já não pesam sobre o recorrido essas suspeitas, isso não faz com que o passado altere-se. Pensar de modo contrário seria impor indenização a todo veículo de imprensa que divulgue investigação ou ação penal que, ao final, mostre-se improcedente. Por esses motivos, deve-se concluir que a conduta da recorrente foi lícita, havendo violação dos arts. 186 e 927 do CC/2002. (...)” (STJ, REsp 984.803/ES, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 26.05.2009).
Mais recentemente, com base na doutrina de Anderson Schreiber, o mesmo STJ aduziu os critérios que devem ser levados em conta para a correta ponderação nos casos envolvendo a imprensa e a divulgação de informações: “O Min. Relator, com base na doutrina, consignou que, para verificação da gravidade do dano sofrido pela pessoa cuja imagem é utilizada sem autorização prévia, devem ser analisados: (i) o grau de consciência do retratado em relação à possibilidade de captação da sua imagem no contexto da imagem do qual foi extraída; (ii) o grau de identificação do retratado na imagem veiculada; (iii) a amplitude da exposição do retratado; e (iv) a natureza e o grau de repercussão do meio pelo qual se dá a divulgação. De outra parte, o direito de informar deve ser garantido, observando os seguintes parâmetros: (i) o grau de utilidade para o público do fato informado por meio da imagem; (ii) o grau de atualidade da imagem; (iii) o grau de necessidade da veiculação da imagem para informar o fato; e (iv) o grau de preservação do contexto originário do qual a imagem foi colhida” (REsp 794.586/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, j. 15.03.2012. Publicação no Informativo n. 493 do STJ). Os pontos destacados pela decisio servem como complemento ao mencionado Enunciado n. 279, da IV Jornada de Direito Civil, antes destacado.
Na verdade, com a declaração de inconstitucionalidade por não recepção da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal (Informativo n. 544 do STF), as questões civis relativas à vinculação de notícias e de informações devem ser resolvidas pelo caminho da técnica de ponderação, o que traz grandes desafios para os aplicadores do Direito em geral.
Partindo para outra concreção relativa à matéria, no que concerne à pessoa notória, um artista famoso, por exemplo, a notícia pode até ser vinculada, desde que isso não gere uma devassa ou arruíne a sua vida. Presente prejuízo à dignidade humana, serão aplicados os princípios da prevenção e da reparação integral, também constantes no art. 20 do CC.
De toda sorte, nos últimos anos de vigência da lei geral privada, têm -se colocado em xeque a incidência do seu art. 20, pois o conteúdo da norma tem implicado verdadeira censura, notadamente de obras biográficas de figuras históricas e que despertam o interesse coletivo.
Nessa realidade, foi proposta uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal contra o referido dispositivo, pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ADIn 4.815, intentada em julho de 2012). O pedido da ação é no sentido de ser reconhecida a inconstitucionalidade parcial dos arts. 20 e 21 do CC/2002, sem redução de texto, “para que, mediante interpretação conforme a Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, elaboradas a respeito de pessoas públicas ou envolvidas em acontecimentos de interesse coletivo”. A petição inicial é acompanhada de parecer muito bem construído pelo Professor Gustavo Tepedino, contando com o apoio deste autor.
Em sentido próximo, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, em maio de 2013, o texto do Projeto de Lei 393/2011. A proposição tende a acrescentar outro parágrafo ao art. 20 do CC/2002, dispondo que “a mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”.
Seguindo na análise dos seus preceitos, o Código Civil tutela, em seu art. 21, o direito à intimidade prescrevendo que a vida privada da pessoa natural é inviolável (art. 5.°, X, da CF/1988). De qualquer forma, esse direito não é absoluto, devendo ser ponderado com outros valores, sobretudo constitucionais. Como bem leciona Anderson Schreiber, “a norma diz pouco para o seu tempo. Como já se enfatizou em relação aos direitos da personalidade em geral, o desafio atual da privacidade não está na sua afirmação, mas na sua efetividade. A mera observação da vida cotidiana revela que, ao contrário da assertiva retumbante do art. 21, a vida privada da pessoa humana é violada sistematicamente. E, às vezes, com razão” (Direitos..., 2011, p. 136-137). Logo a seguir, o jurista cita o exemplo da necessidade de se passar a bagagem de mão no raio-x dos aeroportos, por razão de segurança.
Em havendo lesão ou excesso, caberá medida judicial, devendo o Poder Judiciário adotar as medidas visando a impedir ou cessar a lesão. Eventualmente caberá reparação civil integral, conforme o art. 12 do diploma civil e a Súmula 37 do STJ, anteriormente analisados. Em suma, o dispositivo também consagra a prevenção e a reparação integral.
O conceito de intimidade não se confunde com o de vida privada, sendo o segundo um conceito maior e gênero, como demonstra Silmara Juny Chinellato. Assim sendo, de acordo com as lições da Professora Titular da USP, as categorias podem ser expostas por círculos concêntricos, havendo ainda um círculo menor constituído pelo direito ao segredo (CHINELLATO, Silmara Juny (coord.). Código Civil..., 2010, p. 47).
Em relação ao direito ao segredo, conforme pontua Adriano De Cupis, “O direito ao segredo constitui um aspecto particular do direito ao resguardo. Certas manifestações da pessoa destina-se a conservar-ser completamente inacessíveis ao conhecimento de outros, quer dizer, secretas; não é apenas ilícito o divulgar tais manifestações, mas também o tomar delas conhecimento, e o revelá-las, não importa a quantas pessoas”. (DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade..., 1961, p. 147).
Nas páginas seguintes, a clássica obra italiana analisa a questão do segredo na correspondência epistolar – por carta –, sob três perspectivas: a) o direito de propriedade material sobre a carta a favor de seu destinatário; b) o eventual direito de autor do remetente; c) o direito ao segredo epistolar, relativo tanto ao remetente quanto ao destinatário (DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade..., 1961, p. 147-157). Atualizando tal estudo, tais conclusões servem para as mensagens eletrônicas enviadas pela internet.
Como não poderia ser diferente, a intimidade envolve questões polêmicas, principalmente no que concerne à dificuldade em saber até que ponto vai a privacidade da pessoa e quais seriam as suas limitações.
Exemplificando, cite-se o acórdão do TST, do ano de 2005, que legitimou o empregador a fiscalizar o e-mail corporativo, aquele colocado à disposição do empregado no ambiente de trabalho:
“Prova ilícita. E-mail corporativo. Justa causa. Divulgação de material pornográfico. Os sacrossantos direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de correspondência, constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação estritamente pessoal, ainda que virtual (e-mail particular). Assim, apenas o e-mail pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor próprio, desfruta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade. 2. Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado e-mail corporativo, instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-se de terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do próprio endereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela empresa. Destina-se este a que nele trafeguem mensagens de cunho estritamente profissional. Em princípio, é de uso corporativo, salvo consentimento do empregador. Ostenta, pois, natureza jurídica equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcionada pelo empregador ao empregado para a consecução do serviço. 3. A estreita e cada vez mais intensa vinculação que passou a existir, de uns tempos a esta parte, entre Internet e/ou correspondência eletrônica e justa causa e/ou crime exige muita parcimônia dos órgãos jurisdicionais na qualificação da ilicitude da prova referente ao desvio de finalidade na utilização dessa tecnologia, somando-se em conta, inclusive, o princípio da proporcionalidade e, pois, os diversos valores jurídicos tutelados pela lei e pela Constituição Federal. A experiência subministrada ao magistrado pela observação do que ordinariamente acontece revela que, notadamente o e-mail corporativo, não raro sofre acentuado desvio de finalidade, mediante a utilização abusiva ou ilegal, de que é exemplo envio de fotos pornográficas. Constitui, assim, em última análise, expediente pelo qual o empregado pode provocar expressivo prejuízo ao empregador. 4. Se se cuida de e-mail corporativo, declaradamente destinado somente para assuntos e matérias afetas ao serviço, o que está em jogo, antes de tudo, é o exercício do direito de propriedade do empregador sobre o computador capaz de acessar à Internet e sobre o próprio provedor. Insta estar presente também a responsabilidade do empregador, perante terceiros, pelos atos de seus empregados em serviço (Código Civil, art. 932, III), bem como que está em xeque o direito à imagem do empregador, igualmente merecedor de tutela constitucional. Sobretudo, imperativo considerar que o empregado, ao receber uma caixa de e-mail de seu empregador para uso corporativo, mediante ciência prévia de que nele somente podem transitar mensagens profissionais, não tem razoável expectativa de privacidade quanto a esta, como se vem entendendo no Direito Comparado (EUA e Reino Unido). 5. Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no ambiente de trabalho, em e-mail corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo. Não é ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar justa causa para a despedida decorrente do envio de material pornográfico a colega de trabalho. Inexistência de afronta ao art. 5.°, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal. 6. Agravo de Instrumento do Reclamante a que se nega provimento” (Tribunal Superior do Trabalho, RR 613/2000-013-10-00, DJ 10.06.2005, Primeira Turma, Rel. João Oreste Dalazen).
O julgado transcrito, na verdade, divide a comunidade jurídica. Fica clara a aplicação da técnica de ponderação. Alguns entendem que deve prevalecer o direito à intimidade do empregado, outros que prevalece o direito de propriedade do empregador. Ressalte-se que tanto a privacidade quanto a propriedade são protegidas pela Constituição Federal. A questão é delicada justamente por envolver a ponderação entre direitos fundamentais. Alterando-se os fatores fáticos, obviamente a ponderação deve ser feita de forma distinta, na esteira das lições de Robert Alexy a respeito do tema.
Demonstrando como a questão é polêmica e como os fatores fáticos podem alterar a ponderação, em 2012, o mesmo Tribunal Superior do Trabalho confirmou a premissa da possibilidade de fiscalização. Todavia, asseverou o novo acórdão que “a fiscalização sob equipamentos de computador, de propriedade do empregador, incluído o correio eletrônico da empresa, podem ser fiscalizados, desde que haja proibição expressa de utilização para uso pessoal do equipamento, nos regulamentos da empresa. Nesta hipótese, temos a previsão do poder diretivo, com base no bom senso e nos estritos termos do contrato de trabalho, com respeito à figura do empregado como pessoa digna e merecedora de ter seus direitos personalíssimos irrenunciáveis e inalienáveis, integralmente resguardados pelo Estado Democrático de Direito. Ainda a título de ilustração, registramos que a doutrina tem entendido que o poder diretivo do empregador decorre do direito de propriedade (art. 5.°, XXII, da CF). Este poder, no entanto, não é absoluto, encontra limitações no direito à intimidade do empregado (art. 5.°, X, da CF), bem como na inviolabilidade do sigilo de correspondência, comunicações telegráficas, de dados e telefonemas (art. 5.°, XII, da CF), igualmente garantias constitucionais, das quais decorre o direito de resistência a verificação de sua troca de dados e navegação eletrônica” (TST, RR – 183240-61.2003.5.05.0021, Segunda Turma, Rel. Min. Renato de Lacerda Paiva, j. 05.09.2012).
Como no caso analisado a reclamada apropriou-se de computador de sua propriedade – que se encontrava mediante comodato, sob a guarda e responsabilidade de empregado seu, que exercia poderes especiais em nome do empregador –, julgou-se que houve excesso por parte do empregador, que “agiu com abuso de direito, não respeitando o bem jurídico ‘trabalho’, a função social da propriedade, a função social do contrato do trabalho, dentre outros valores contemplados pela Constituição Federal de 1988”. In casu, o empregado foi indenizado em R$ 60.000,00 pelos prejuízos imateriais sofridos em decorrência do ato do empregador.
Seguindo no estudo do tema, anote-se que na V Jornada de Direito Civil foram aprovados dois enunciados bem interessantes a respeito da proteção da intimidade e de dados sensíveis. O primeiro tem o seguinte conteúdo: “A tutela da privacidade da pessoa humana compreende os controles espacial, contextual e temporal dos próprios dados, sendo necessário seu expresso consentimento para tratamento de informações que versem especialmente o estado de saúde, a condição sexual, a origem racial ou étnica, as convicções religiosas, filosóficas e políticas” (Enunciado n. 404). O segundo foi assim elaborado: “As informações genéticas são parte da vida privada e não podem ser utilizadas para fins diversos daqueles que motivaram seu armazenamento, registro ou uso, salvo com autorização do titular” (Enunciado n. 405).
Encerrando a presente seção, é preciso deixar consignado que a proteção aos direitos da personalidade está intimamente ligada à honra da pessoa humana, que também tem classificação interessante no âmbito jurídico:
a) honra subjetiva: a autoestima, o que o sujeito pensa de si;
b) honra objetiva: a repercussão social, o que os outros pensam de alguém. Conceito similar à imagem-atributo.
A divisão segue a ideia concebida por Adriano De Cupis, para quem “A honra significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como, enfim, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal” (DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade..., 1961, p. 111).
Repise-se mais uma vez que os arts. 11 a 21 do CC/2002 são normas de ordem pública e interesse social. As matérias ali deduzidas não poderão ser afastadas por força de contrato ou outro negócio jurídico. Dessa forma, poderá o juiz, de ofício, declarar tal proteção em eventual ação que tem como objeto direito inerente à dignidade da pessoa humana.
As regras quanto ao domicílio da pessoa natural constam entre os arts. 70 a 78 do CC. O tema traz algumas confusões, sendo necessários esclarecimentos conceituais.
Inicialmente o domicílio pode ser definido como o local em que a pessoa pode ser sujeito de direitos e deveres na ordem privada, definindo Maria Helena Diniz como sendo “a sede jurídica da pessoa, onde ela se presume presente para efeitos de direito e onde exerce ou pratica, habitualmente, seus atos e negócios jurídicos” (Código Civil anotado..., 2005, p. 106).
A concepção do domicílio, dessa forma, relaciona-se com outros conceitos, como o de residência e de moradia (este último também conceituado como habitação). O domicílio, em regra, é o local em que a pessoa se situa, permanecendo a maior parte do tempo com ânimo definitivo. Por regra, pelo que consta do art. 70 do CC o domicílio da pessoa natural é o local de sua residência. No domicílio há dois elementos: um subjetivo, formado pelo ânimo de permanência; e outro objetivo, constituído pelo estabelecimento da pessoa.
Por outra via, a habitação ou moradia é o local em que a pessoa é eventualmente encontrada, não correspondendo sempre à sua residência ou domicílio. A título de exemplo, um turista a passeio no Brasil não tem aqui o seu domicílio ou residência, mas apenas uma moradia provisória, tendo em vista a sua breve partida. Não há o elemento subjetivo, o que afasta a caracterização como residência. Aliás, o domicílio de uma pessoa que não tenha residência física (um circense, um cigano, um peregrino, um nômade) é o local em que ela for encontrada, ou seja, o local de sua habitação ou moradia (art. 73 do CC).
Eventualmente, de acordo com o art. 71 do Código em vigor, a pessoa pode possuir dois ou mais locais de residência, onde alternadamente viva, considerando-se seu domicílio qualquer um desses locais. O Código de Processo Civil tem regra que mantém estreita ligação com tal preceito, pela previsão do seu art. 94, § 1.°, nos seguintes termos: “Tendo mais de um domicílio, o réu será demandado no foro de qualquer deles”.
Conforme será visto, o elemento residência é primordial para a caracterização do bem de família legal, previsto pela Lei 8.009/1990, sendo certo que é impenhorável o único imóvel, urbano ou rural, utilizado como residência da entidade familiar (art. 1.° da referida lei). Como exceção, havendo dois imóveis utilizados para residência, à luz do que consta no art. 71 da codificação, estará protegido o de menor valor (art. 5.°, parágrafo único, da Lei 8.009/1990).
Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald não se pode desassociar o domicílio da questão da dignidade da pessoa humana, eis que “na visão civil-constitucional, reforça-se a grande importância do domicílio em face da grande ameaça da vida ‘tornar-se pública’, passando a casa a representar o ‘refúgio dos refúgios’, acobertada pela inarredável característica da inviolabilidade, tornando-se uma ‘fortaleza da privacy’, verdadeiro templo das coisas íntimas” (Direito Civil. Teoria Geral..., 2006, p. 213). Concorda-se com suas palavras, sendo pertinente lembrar a proteção da intimidade, que consta do art. 21 do CC. Por certo que o domicílio inclui também o endereço eletrônico, o e-mail, que, do mesmo modo, merece ampla proteção, inclusive como um direito de personalidade.
A pluralidade domiciliar também está reconhecida pelo que consta no art. 72 do CC, pois o local em que a pessoa exerce a sua profissão também deve ser tido como seu domicílio (domicílio profissional). Se a pessoa exercitar a sua profissão em vários locais, todos também serão tidos como domicílios, o que amplia mais ainda as possibilidades antes vistas.
De acordo com essa inovação, e porque a grande maioria das pessoas tem uma residência e outro local onde exerce sua profissão ou trabalha, em regra, a pessoa tem dois domicílios e não somente um como outrora, interpretação essa que era retirada do que constava no Código Civil de 1916.
Segundo o art. 74, caput, do atual Código Civil, cessando os elementos objetivo e subjetivo do domicílio, ocorre a sua mudança, desde que haja animus por parte da pessoa. Enuncia esse dispositivo que “Muda-se o domicílio, transferindo a residência, com a intenção manifesta de o mudar”. A prova dessa intenção será feita pelas declarações da pessoa às municipalidades dos lugares que deixa ou para onde vai, ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as circunstâncias que a acompanharem (art. 74, parágrafo único, do CC). Exemplificando, a alteração de domicílio eleitoral, como regra, vale como prova. Acredita-se que o parágrafo único do art. 74 traz uma presunção legal iuris tantum, aquela que eventualmente admite prova em contrário por outros meios.
Finalizando o presente tópico, quanto à origem, é interessante vislumbrar a seguinte classificação do domicílio da pessoa natural:
a) Domicílio voluntário: é aquele fixado pela vontade da pessoa, como exercício da autonomia privada, tendo em vista as regras anteriormente estudadas.
b) Domicílio necessário ou legal: é o imposto pela lei, a partir de regras específicas que constam no art. 76 do Código Civil. Deve ficar claro que o domicílio necessário não exclui o voluntário, sendo as suas hipóteses de imposição normativa:
– o domicílio dos absolutamente e relativamente incapazes (arts. 3.° e 4.° do CC) é o mesmo dos seus representantes;
– o domicílio do servidor público ou funcionário público é o local em que exercer, com caráter permanente, as suas funções;
– o domicílio do militar é o do quartel onde servir ou do comando a que se encontrar subordinado (sendo da Marinha ou da Aeronáutica);
– o domicílio do marítimo ou marinheiro é o do local em que o navio estiver matriculado;
– o domicílio do preso é o local em que cumpre a sua pena.
c) Domicílio contratual ou convencional: é aquele previsto no art. 78 do CC, pelo qual, “nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar o domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes”. A fixação desse domicílio para um negócio jurídico acaba repercutindo para a questão do foro competente para apreciar eventual discussão do contrato, razão pela qual se denomina tal previsão como cláusula de eleição de foro.
Relativamente à cláusula de eleição de foro, muito comum nos contratos bancários e de natureza financeira, algumas palavras devem ser ditas. No caso de contratos de consumo, sendo reconhecido o direito dos consumidores proporem ações de responsabilidade civil ou de outra natureza (conforme jurisprudência) em seu domicílio, nos termos do art. 101, I, da Lei 8.078/1990, não vale previsão em contrário inserida na dita cláusula, que deve ser tida como cláusula abusiva, nos termos do art. 51, IV e XV, do mesmo CDC.
Ao lado dessa previsão, há muito tempo se discutia na jurisprudência a validade da cláusula de eleição de foro quando se tratasse de um contrato de adesão que não assumia a forma de contrato de consumo. Anote-se que o contrato de adesão é aquele que tem o conteúdo imposto unilateralmente por uma das partes, conceito que não se confunde necessariamente com o contrato de consumo, cuja construção é retirada dos arts. 2.° e 3.° da Lei 8.078/1990.
Com todo o respeito que merecia eventual posicionamento ao contrário, sempre entendemos que a cláusula de eleição de foro não teria aplicação quando o contrato assumisse esta natureza, renunciando eventual aderente e devedor ao direito de demandar ou ser demandado no seu domicílio.
Primeiro, porque é direito reconhecido ao devedor a possibilidade de ser demandado no foro do seu domicílio, segundo o art. 94 do CPC. Segundo, porque a obrigação, regra geral, deve ser cumprida no domicílio do devedor, tendo natureza quesível ou quérable, conforme o art. 327 do CC, salvo previsão em contrário em contrato paritário. Haveria, portanto, renúncia a direito inerente ao negócio em casos tais, o que levaria à nulidade de tais cláusulas, inseridas nos contratos de adesão, nos termos do art. 424 do CC (“Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio”).
Ora, é direito inerente à condição de devedor a possibilidade de o aderente responder, quando assumir esta posição obrigacional, no foro do seu domicílio. Dessa forma, sempre entendemos que não poderia prevalecer a cláusula pactuada. Da jurisprudência, concluindo da mesma forma, transcreve-se:
“Foro de eleição. Demanda objetivando a revisão de contrato bancário proposta no Juízo do principal estabelecimento do banco réu, em São Paulo, Capital. Relação de consumo caracterizada. Aplicação, no caso, do princípio da facilitação do consumidor. Desconsideração da cláusula de eleição de foro estabelecido em contrato de adesão, padrão, impresso. Exceção de incompetência rejeitada. Recurso provido” (1.° TACSP, AI 1.160.771-5-SP, Rel. Juiz Oséias Viana, j. 26.02.2003, Boletim AASP n. 2.365, 3 a 9 de maio de 2004, p. 861).
Pois bem, todo esse raciocínio foi confirmado pela Lei 11.208/2006, que introduziu o art. 112, parágrafo único, do CPC, pelo qual a nulidade da cláusula de eleição de foro em contrato de adesão pode ser conhecida de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o domicílio do réu.
O novo dispositivo traz como conteúdo a eficácia interna da função social dos contratos, entre as partes contratantes (art. 421 do CC e Enunciado n. 360 da IV Jornada de Direito Civil), em prol da parte vulnerável da relação contratual, ou seja, do aderente. Por essa proteção, dando efetividade ao princípio em questão, a alteração legislativa é louvável e merece aplausos.
Encerrada essa pertinente análise, bem como o estudo do domicílio da pessoa natural, passa-se ao último tópico do capítulo, analisando as regras atinentes à cessação da personalidade, a morte da pessoa natural.
A morte põe fim, regra geral, à personalidade. De qualquer forma, como antes exposto, alguns direitos do morto permanecem, diante da possibilidade de os lesados indiretos pleitearem indenização por lesão à honra ou imagem do de cujus (art. 12, parágrafo único; art. 20, parágrafo único, ambos do CC). Em resumo, pode-se afirmar que o morto tem resquícios de personalidade civil, não se aplicando o art. 6.° da codificação aos direitos da personalidade.
Nesse sentido, passa-se a tratar dos casos de morte civil previstos no ordenamento jurídico brasileiro, a saber:
a) morte real;
b) morte presumida sem declaração de ausência (justificação); e
c) morte presumida com declaração de ausência.
Vejamos tais categorias e as regras específicas correspondentes.
O fim da personalidade da pessoa natural, como se sabe, dá-se pela morte, conforme a regra do art. 6.° do CC, pelo qual “a existência da pessoa natural termina com a morte”. A lei exige, dessa forma, a morte cerebral (morte real), ou seja, que o cérebro da pessoa pare de funcionar. Isso consta, inclusive, do art. 3.° da Lei 9.434/1997, que trata da morte para fins de remoção de órgãos para transplante.
Para tanto, é necessário um laudo médico, visando à elaboração do atestado de óbito, a ser registrado no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, nos termos do art. 9.°, I, da codificação.
A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) fixa os parâmetros para a elaboração de tal documento. A sua exigência está contida no art. 77 da referida lei, sendo certo que “nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento, extraída após a lavratura do assento de óbito”. O art. 79 da LRP traz as pessoas obrigadas a fazer a declaração de óbito, a saber:
– Os chefes familiares (pai e mãe), em relação aos seus filhos, hóspedes, agregados ou empregados.
– Um cônjuge em relação ao outro.
– O filho a respeito dos pais.
– O irmão a respeito dos irmãos.
– O administrador, diretor ou gerente de pessoa jurídica de direito público ou privado, a respeito das pessoas que falecerem em sua sede, salvo se estiver presente no momento algum dos parentes antes indicados.
– Na falta de pessoa competente, as pessoas que tiverem assistido aos últimos momentos do falecido.
– O médico, o sacerdote ou o vizinho que tiver tido notícia do falecimento.
– A autoridade policial, a respeito das pessoas encontradas mortas.
O atestado de óbito deverá conter (art. 80 da Lei de Registros Públicos):
a) dia, mês, ano e hora (se for possível) do falecimento;
b) lugar do falecimento, com indicação precisa;
c) o nome completo, sexo, idade, cor, estado civil, profissão, naturalidade, domicílio e residência do morto;
d) sendo o de cujus casado, o nome do cônjuge sobrevivente, mesmo estando os mesmos separados judicialmente; se era viúvo o falecido, o nome do cônjuge premorto, devendo constar a referência quanto ao cartório do casamento nos dois casos;
e) os nomes completos, prenomes, profissão, naturalidade e residência dos pais;
f) se faleceu com testamento conhecido;
g) se deixou filhos, nome e idade de cada um;
h) se a morte foi natural ou violenta e a causa conhecida, como o nome dos atestantes;
i) o lugar do sepultamento;
j) se deixou bens e herdeiros menores ou interditados;
k) se era eleitor;
l) pelo menos uma informação quanto a documentos identificadores.
A prática tem demonstrado que alguns dos dados acima são dispensáveis, como aqueles relacionados com a qualificação das partes. De qualquer forma, tais elementos são fundamentais, eis que a morte real gera efeitos importantes para a órbita civil, como aqueles elencados por Maria Helena Diniz, a saber: “1) dissolução da sociedade conjugal (Lei 6.515/1977 e CC, art. 1.571, I) e do regime matrimonial; 2) extinção do poder familiar (CC, art. 1.635, I); dos contratos personalíssimos, como locação de serviços (CC, art. 607), e mandato (CC, art. 682, II; STF, Súmula 25); 3) cessação da obrigação de alimentos, com o falecimento do credor, pois, com o devedor, seus herdeiros assumirão os ônus até as forças da herança (Lei 6.515/1977, art. 23; CC, art. 1.700; RJTJSP 82:38; RT 574:68); da obrigação de fazer, quando convencionado o cumprimento pessoal (CC, arts. 247 e 248), do pacto de preempção (CC, art. 560); 4) extinção do usufruto (CC, art. 1.410, I; CPC, art. 1.112, VI); da doação em forma de subvenção periódica (CC, art. 545); do encargo da testamentaria (CC, art. 1.985); do benefício da justiça gratuita (Lei 1.060/1950)” (Curso de direito civil brasileiro, 2002, v. I, p. 198).
O próprio art. 6.° do CC/2002, segunda parte, disciplina que o ausente deve ser tratado como se morto fosse, havendo declaração de morte presumida, nos termos dos arts. 22 a 39 da codificação. O ausente, assim, não pode ser tratado como absolutamente incapaz, conforme fazia a codificação anterior.
O art. 7.° do CC prevê dois casos de morte presumida, sem declaração de ausência, a saber:
– Desaparecimento do corpo da pessoa, sendo extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;
– Desaparecimento de pessoa envolvida em campanha militar ou feito prisioneiro, não sendo encontrado até dois anos após o término da guerra.
O art. 7.°, I, do CC, tem aplicação perfeita nos casos envolvendo desastres, acidentes, catástrofes naturais, sendo certo que o parágrafo único desse dispositivo preconiza que a declaração de morte somente será possível depois de esgotados todos os meios de buscas e averiguações do corpo da pessoa, devendo constar da sentença a data provável da morte da pessoa natural.
Nesse sentido, é de se seguir o posicionamento de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, para quem esse dispositivo (art. 7.° do CC) equivale ao art. 88 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), que já tratava da morte por justificação (Código Civil comentado..., 2005, p. 166). Para fins didáticos, é interessante transcrever o teor da regra específica da LRP, que foi encampada pela novel codificação: “Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame. Parágrafo único: Será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em campanha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do art. 85 e os fatos que convençam a ocorrência do óbito”.
Como há certa discrepância entre o art. 7.° do CC e o art. 88 da LRP, entendemos que não houve revogação, nos termos da segunda parte do art. 2.043 do CC. Os dois dispositivos continuam em vigor, tratando da morte por justificação, em diálogo de complementaridade (diálogo das fontes). A presunção contida em tais dispositivos é legal e relativa, iuris tantum, admitindo prova em contrário, pelo próprio retorno da pessoa viva.
Nos casos de justificação, há uma presunção quanto à própria existência da morte, não sendo necessário o aguardo do longo prazo previsto para a ausência. Assim, expede-se imediatamente a certidão de óbito, preenchidos os seus requisitos.
Por fim, ressalta-se que a Lei 9.140/1995 presume a morte de “pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias” (redação dada pela Lei 10.536/2002). O caso também é de morte presumida sem declaração de ausência, tratada pela legislação especial.
A ausência pode ser considerada como hipótese de morte presumida, decorrente do desaparecimento da pessoa natural, sem deixar corpo presente (morte real). A ausência, anteriormente, era tratada como causa de incapacidade absoluta da pessoa, agora é hipótese de inexistência por morte. Em outras palavras, ocorre nos casos em que a pessoa está em local incerto e não sabido (LINS), não havendo indícios das razões do seu desaparecimento. Prevê o art. 1.159 do CPC que “Desaparecendo alguém do seu domicílio sem deixar representante a quem caiba administrar-lhe os bens, ou deixando mandatário que não queira ou não possa continuar a exercer o mandato, declarar-se-á a sua ausência”.
O Código Civil simplificou as regras quanto à ausência, caso em que há uma presunção legal relativa (iuris tantum), quanto à existência da morte da pessoa natural, nos casos em que a pessoa está em local incerto e não sabido, não havendo indícios das razões do seu desaparecimento. É primaz, para um trabalho de facilitação didática, estudar as três fases relacionadas com tal presunção, conforme os tópicos a seguir:
Nessa primeira fase, desaparecendo a pessoa sem notícias e não deixando qualquer representante, é nomeado um curador para guardar seus bens, em ação específica proposta pelo Ministério Público ou por qualquer interessado, caso dos seus sucessores (arts. 22 do CC e 1.160 do CPC).
Eventualmente, deixando o ausente um representante que não quer aceitar o encargo de administrar seus bens, também será possível a nomeação do curador. Quanto à atuação desse último, cabe ao juiz fixar os seus poderes e obrigações, devendo ser aplicadas as regras previstas para a tutela e para a curatela (arts. 1.728 a 1.783 do CC).
Determina o art. 25 da codificação civil que cabe ao cônjuge do ausente a condição de curador legítimo, sempre que não esteja separado judicialmente ou de fato há mais de dois anos. Como este autor segue a corrente que afirma que a separação judicial foi banida do sistema pela Emenda Constitucional 66/2010, o comando deve ser lido com reservas na sua menção, somente se aplicando às pessoas que já estavam separadas quando da entrada em vigor da Emenda do Divórcio.
Ausente o cônjuge, o próprio dispositivo em questão estabelece a ordem de preferência para nomeação do curador, a saber:
1.°) serão chamados os pais do ausente;
2.°) na falta de pais, serão chamados os descendentes, não havendo impedimento, sendo certo que o grau mais próximo exclui o mais remoto;
3.°) na falta de cônjuge, pais e descendentes, deverá o juiz nomear um curador dativo ou ad hoc, entre pessoas idôneas de sua confiança.
Apesar da ausência de previsão quanto ao convivente ou companheiro, ele merece o mesmo tratamento do cônjuge, pelo teor do Enunciado n. 97 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, cuja redação é pertinente e com o qual se concorda, pelo que consta no art. 226, § 3.°, da CF/1988: “Art. 25: no que tange à tutela especial da família, as regras do Código Civil que se referem apenas ao cônjuge devem ser estendidas à situação jurídica que envolve o companheirismo, como por exemplo na hipótese de nomeação de curador dos bens do ausente (art. 25 do CC)”.
Regra geral, um ano após a arrecadação de bens do ausente e da correspondente nomeação de um curador, poderá ser aberta a sucessão provisória, mediante pedido formulado pelos interessados. Deixando o ausente um representante, o prazo é excepcionado, aumentado para três anos, conforme o art. 26 do CC. O Ministério Público somente pode requerer a abertura da sucessão provisória findo o prazo aqui mencionado, não havendo interessados em relação à herança.
São considerados interessados para requerer a dita sucessão (art. 27 do CC):
a) o cônjuge não separado judicialmente, o que mais uma vez deve ser lido com ressalvas, diante da Emenda do Divórcio;
b) os herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários, situação em que se enquadra a companheira, pelo que consta dos arts. 1.790 e 1.844 do CC;
c) os que tiverem direitos relacionados com os bens ausentes, particularmente para após a sua morte, caso dos legatários;
d) os credores de obrigações vencidas e não pagas pelo desaparecido.
A sentença de sucessão provisória somente produz efeitos após cento e oitenta dias de publicada na imprensa, não transitando em julgado no prazo geral. O art. 28 do CC prevê, contudo, que logo após o trânsito em julgado é possível a abertura de eventual testamento deixado pelo desaparecido, bem como do inventário para a partilha dos bens deixados.
Se for o caso, antes mesmo da partilha, poderá o magistrado determinar que os bens móveis sujeitos a deterioração ou a extravio sejam convertidos em bens imóveis ou em títulos garantidos pela União. Lembram Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery que tal conversão deve ser “procedida nos moldes do CPC 1.113 a 1.119. Além disso, o curador pode se valer de outra medida judicial que se fizer necessária para a preservação dos bens que compõem a massa arrecadada” (Novo Código Civil..., 2003, p. 185). De realce que esse capítulo do Código de Processo Civil referenciado trata justamente das alienações judiciais.
De acordo com o art. 31 do CC, quanto aos bens imóveis do ausente, estes são por regra inalienáveis, até a correspondente divisão e partilha. Eventualmente, para afastar a ruína, poderá o magistrado determinar a sua alienação, também nos termos daquele capítulo específico da lei processual.
O Código Civil atual continua exigindo que os herdeiros deem garantias para serem imitidos na posse dos bens do ausente, mediante penhores ou hipotecas, equivalentes aos quinhões respectivos (art. 30, caput, do CC).
Aquele que tiver direito à posse provisória, mas não puder prestar a garantia exigida no dispositivo, será excluído, mantendo-se os bens que lhe deviam caber sob a administração do curador, ou de outro herdeiro designado pelo juiz, e que preste essa garantia (art. 30, § 1.°, do CC). Estão dispensados de prestar tais garantias, contudo, os ascendentes e descendentes, que provarem a sua qualidade de herdeiros (art. 30, § 2.°, do CC).
Empossados os herdeiros quanto aos bens do ausente, passam a responder por eventuais dívidas do desaparecido, até os limites da herança, nos moldes do art. 1.792 do CC. É o que enuncia o art. 32 do CC. Ocorrendo a sucessão provisória, poderão os herdeiros também representar ativamente aquele que desapareceu, no caso de ser este credor em relação a terceiro.
Sendo o herdeiro descendente, ascendente ou cônjuge do ausente terá direito a todos os frutos (naturais, industriais e civis ou rendimentos), colhidos durante o momento de exercício da posse. Demais sucessores terão direito somente em relação à metade desses frutos, devendo prestar contas ao juiz competente (art. 33, caput, do CC). Retornando o ausente e provada a sua ausência voluntária, perderá totalmente o direito quanto aos frutos para o sucessor correspondente (art. 33, parágrafo único, do CC).
Segundo o art. 34 do CC, aquele que foi excluído da posse dos bens do ausente, por não ter bens suficientes para oferecer em garantia (art. 30, § 1.°), poderá, justificada a falta de bens para tal caução, exigir que lhe seja entregue a metade dos rendimentos (frutos civis) que teria direito estando na posse dos bens do desaparecido.
Aparecendo o ausente no momento de exercício da posse provisória, perderão os herdeiros os direitos quanto aos bens, exceção feita quanto aos frutos, conforme as regras antes comentadas. Mas até a entrega de tais bens, responderão os herdeiros, cessando a posse justa quanto aos bens que lhe foram entregues conforme as regras materiais que constam da codificação.
Por fim, determina o art. 35 do CC que se durante a posse provisória se provar a época exata do falecimento do ausente, considerar-se-á, nessa data, aberta a sucessão em favor dos herdeiros, que o eram àquele tempo. Já o art. 36 do Código dispõe que se o ausente aparecer, ou se lhe provar a existência, depois de estabelecida a posse provisória, cessarão para logo as vantagens dos sucessores nela imitidos, ficando, todavia, obrigados a tomar as medidas assecuratórias precisas, até a entrega dos bens a seu dono, caso de eventuais ações possessórias em face de terceiros esbulhadores.
O Código Civil de 2002 reduziu pela metade o prazo para conversão da sucessão provisória em definitiva, que antes era de 20 (vinte) anos, para 10 (dez) anos, conforme consta do seu art. 37. Tal prazo conta-se do trânsito em julgado da sentença da ação de sucessão provisória.
Conforme prescreve o art. 38 do CC, cabe requerimento de sucessão definitiva da pessoa de mais de oitenta anos desaparecida há pelo menos cinco anos. Na opinião deste autor, em casos tais, não há necessidade de se observar as fases anteriores, ingressando-se nessa terceira fase, de forma direta. Entretanto, tal dispositivo, cuja redação é “pode-se requerer a sucessão definitiva, também, provando-se que o ausente conta oitenta anos de idade, e que de cinco datam as últimas notícias dele”, traz enunciado confuso conforme observam Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery (Código Civil comentado..., 2005, p. 186). Isso porque, segundo os juristas, “dependendo da situação este artigo permite encurtamento do prazo de dez anos ou não. Ex.: a) quando desapareceu o ausente já contava 80 anos: aguarda-se cinco anos para a sua sucessão – nessa hipótese há um encurtamento de prazo; b) quando desapareceu, o ausente contava com 75 anos. A partir dos oitenta serão contados cinco: não há alteração do prazo, posto que no total será mister aguardar dez anos”.
Por fim, regressando o ausente nos dez anos seguintes à abertura da sucessão definitiva, terá ele direito somente em relação aos bens ainda existentes, no estado em que se encontrarem, ou em relação àqueles bens que foram comprados da venda dos bens que lhe pertenciam (bens sub-rogados), o que necessita de prova (art. 39 do CC). Essa regra também se aplica se surgirem ascendentes ou descendentes do desaparecido, nesse prazo, tendo sido atribuída a herança para sucessores de outras classes.
Após esse prazo de dez anos, se não regressar o ausente, os bens arrecadados serão definitivamente dos herdeiros, não tendo o desaparecido qualquer direito. Também não retornando o ausente e não tendo ele herdeiros, os bens serão tidos como vagos (bens ereptícios), passando ao domínio do Estado, nos moldes do art. 1.844 do CC (art. 39, parágrafo único, do CC). O domínio passa a ser, portanto, do Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da União, quando situados em território federal.
Finalizando essa seção, é interessante tecer alguns comentários quanto ao retorno do ausente que era casado.
Isso porque o art. 1.571, § 1.°, do CC prevê que o casamento do ausente se desfaz por morte, estando o seu ex-cônjuge livre para casar com terceiro. Pois bem, como fica a situação desse seu ex-consorte quando o desaparecido reaparece após todo esse prazo mencionado na codificação novel? Dois posicionamentos podem ser tidos em relação à matéria:
1.°) Considerar válido o segundo casamento e dissolvido o primeiro, ressaltando a boa-fé dos nubentes, e desvalorizando a conduta, muitas vezes de abandono, do ausente.
2.°) Declarar nulo o segundo casamento, eis que não podem casar as pessoas casadas, nos termos do art. 1.521, VI, do CC. Com o reaparecimento, não se aplicaria, portanto, a regra do art. 1.571 da codificação.
Tendo em vista a valorização da boa-fé e da eticidade, um dos baluartes da atual codificação privada, este autor segue o primeiro posicionamento, por influência da doutrina de Zeno Veloso (Novo casamento..., Disponível em: <www.flavio tartuce.adv.br> – Artigos de Convidados. Acesso em: 5 de fevereiro de 2006). Nesse parecer do jurista paraense, é interessante observar a sua proposta legislativa, muito pertinente para o caso em questão:
“Começando a terminar, e sintetizando: vimos que o novo Código Civil brasileiro, art. 1.571, § 1.°, in fine, considera dissolvido o casamento do ausente cuja morte presumida é declarada (ver, também, os arts. 6.°, segunda parte, e 37). Está habilitado, portanto, o cônjuge presente a contrair novas núpcias, a celebrar outro casamento, reconstruir, enfim, a sua vida afetiva, buscar o seu direito (natural, constitucional) de ser feliz.
Mas, tudo é possível, mesmo o que consideramos impossível, e o ausente pode reaparecer, como alguém que ressurge das sombras, como um ser que ressuscita. Quid juris? O novo Código Civil não resolve o problema, e precisa fazê-lo, como muitas legislações estrangeiras, até em nome da segurança jurídica.
Assim, encerrando essas digressões, e não me limitando à crítica, venho sugerir que seja introduzido no Código Civil o art. 1.571-A, com a redação seguinte:
‘Art. 1.571-A. Se o cônjuge do ausente contrair novo casamento, e o que se presumia morto retornar ou confirmar-se que estava vivo quando celebradas as novas núpcias, o casamento precedente permanece dissolvido’” (VELOSO, Zeno. Novo casamento..., 2006).
Concordando com suas palavras e proposta, encerra-se a presente seção.
Além dos casos de presunção quanto à própria existência da morte (justificação e ausência), o Código Civil traz outro caso de presunção legal e relativa, agora quanto ao momento da morte, ou seja, a comoriência, conforme o seu art. 8.°, in verbis:
“Art. 8.° Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos”.
O artigo em questão não exige que a morte tenha ocorrido no mesmo local, mas ao mesmo tempo, sendo pertinente tal regra quando os falecidos forem pessoas da mesma família, e com direitos sucessórios entre si.
Exemplificamos com o caso a seguir:
Suponha-se o caso de mortes simultâneas de dois cônjuges (A e B), que não tenham descendentes ou sem ascendentes, mas que possuam dois irmãos C e D (colaterais de segundo grau). Pelo instituto da comoriência, a herança de ambos é dividida à razão de 50% para os herdeiros de cada cônjuge, não sendo pertinente, aqui, observar qual era o regime de bens entre os mesmos.
No caso de um acidente automobilístico, se um policial presenciar que A morreu segundos após B, não deve ser considerada a opinião deste que presenciou a morte para fins sucessórios, não havendo laudo médico que ateste tal fato. Caso contrário, a herança de B iria para A e, automaticamente, tendo em vista a morte deste último, para C, que sequer é de sua família consanguínea (cunhados são parentes afins).
Consigne-se, nesse sentido, a ordem de sucessão legítima, sem maiores aprofundamentos quanto à concorrência do cônjuge, que consta do art. 1.829 do CC: 1.°) descendentes, 2.°) ascendentes, 3.°) cônjuge, 4.°) colaterais até 4.° grau.
Dessa forma, não havendo laudo médico, deve-se considerar que os dois cônjuges morreram ao mesmo tempo. Conclusão: a herança de A irá para seu colateral C e a herança de B irá para seu colateral D. Faz-se justiça, as heranças ficam mantidas nas famílias consanguíneas correspondentes.
Repita-se que essa presunção é relativa (iuris tantum), podendo ser afastada por laudo médico ou outra prova efetiva e precisa do momento da morte real, conclusão reiteradamente seguida pela jurisprudência (por todos: TJSP, Apelação n. 9179145-82.2008.8.26.0000, 25ª Câmara de Direito Privado, Comarca de São Paulo. Rel. Des. Hugo Crepaldi, j. 20.06.2012).
Ressalte-se, em reforço, que muitas vezes a jurisprudência não tem afastado tal presunção, especialmente se houver dificuldade de prova. Para ilustrar, transcrevem-se as seguintes ementas, dos Tribunais de São Paulo e Minas Gerais:
“Comoriência. Acidente de carro. Vítima arremessada a 25 metros de distância do local, encontrada morta pelos peritos 45 minutos depois, enquanto o marido foi conduzido ainda com vida ao hospital falecendo em seguida. Presunção legal não afastada. Sentença de improcedência reformada. Recurso provido” (TJSP, Apelação com Revisão 566.202.4/5, Acórdão 2652772, São João da Boa Vista, 8.ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 11.06.2008, DJESP 27.06.2008).
“Comoriência. Presunção legal. Elisão. Prova. Não se podendo afirmar com absoluta certeza, em face da prova dos autos, a premoriência de uma das vítimas de acidente em que veículo é abalroado e vem a explodir quase em seguida, deve ser mantida a presunção legal de comoriência. Apelo improvido” (TJMG, Acórdáo 1.0137.06.9000065/001, Carlos Chagas, 5.ª Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio Renato dos Santos Costa, j. 09.11.2006, DJMG 1.°.12.2006).
Tema clássico de Direito Privado é o relativo ao estado civil da pessoa natural, categoria que merece uma visão crítica, pela insuficiência que a matéria alcança na realidade contemporânea.
Para iniciar o estudo do instituto, em sentido amplo, surge a ideia de estado da pessoa, o que remonta ao Direito Romano. Como bem leciona Rubens Limongi França, “O estado é um dos atributos da personalidade. Desses atributos é o de conceituação mais vaga, pois, segundo os autores, consiste no modo particular de existir das pessoas. Sua noção porém torna-se mais precisa se lembrarmos que no direito moderno corresponde à noção de status do Direito Romano” (Instituições..., 1996, p. 51). O jurista demonstra que, para o Direito moderno, quatro são as modalidades básicas de estado, com variações com relevância prática para o Direito Privado:
a) Estado político – leva-se em conta se o sujeito é nacional (brasileiro nato ou naturalizado) ou estrangeiro. A matéria está tratada em vários dispositivos da Constituição Federal de 1988, como no seu art. 12, que elenca o rol dos indivíduos considerados como brasileiros.
b) Estado profissional – vislumbra-se a atuação econômica da pessoa natural. Na visão clássica, a partir das lições de Limongi França, estão incluídos os funcionários públicos, os empregadores, os empregados, os sacerdotes, os trabalhadores autônomos, os militares, entre outros (Instituições..., 1996, p. 52). Podem ser mencionados ainda os empresários, cujas atividades estão descritas no art. 966, caput, do Código Civil (“Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”).
c) Estado individual – são abrangidas algumas peculiaridades do indivíduo, tais como sua idade (inclusive se a pessoa é maior ou menor), seu estado psíquico, sua saúde, sua imagem, entre outros.
d) Estado familiar – visualiza-se a situação da pessoa no âmbito de constituição de uma família, tratada pelo art. 226, caput, da CF/1988 como a base da sociedade.
No âmbito do estado civil familiar é que cabem considerações pontuais, especialmente tendo em vista a realidade jurídica nacional contemporânea. Em uma visão tradicional e clássica, são situações existenciais tidas como modalidades desse estado civil:
– Solteiro – pessoa que não está ligada com outra pelo vínculo do casamento, ou que teve o seu casamento reconhecido como nulo ou anulável, nos termos do art. 1.571 do Código Civil.
– Casado – aquele que se encontra ligado pelo vínculo do casamento, conforme o art. 1.511 do Código Civil e o art. 226, § 1.°, da Constituição Federal de 1988.
– Viúvo – indivíduo que se desligou do vínculo do casamento na hipótese de falecimento do outro cônjuge.
– Divorciado – pessoa que rompeu o vínculo do casamento que tinha com outrem por meio do divórcio.
– Separado juridicamente (judicialmente ou extrajudicialmente) – aquele que rompeu a sociedade conjugal por meio de uma ação judicial ou escritura pública lavrada em Tabelionato de Notas (a última, nos termos da Lei 11.441/2007). Oportuno pontuar que o separado juridicamente ainda mantém o vínculo matrimonial com o outro cônjuge, presente apenas a extinção da sociedade conjugal. Deve ficar claro que o presente autor entende pelo fim das duas modalidades de separação, desde a Emenda do Divórcio (EC 66/2010), que deu nova redação ao art. 226, § 6.°, da CF/1988. Todavia, pessoas que estavam em tal situação antes da entrada em vigor da Emenda, em julho de 2010, mantêm esse estado, em prol da tutela do direito adquirido. O tema está aprofundado no Volume 5 da presente coleção.
A principal crítica que se pode fazer às modalidades destacadas refere-se ao fato de não haver tratamento específico a respeito do estado civil familiar de companheiro ou convivente. Como é notório, a união estável foi alçada ao status familiar pela Constituição Federal de 1988 (art. 226, § 3.°), sendo comum a sua constituição na contemporaneidade por opção das partes. Seus requisitos são descritos pelo art. 1.723 do Código Civil, quais sejam, a convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas, com o objetivo de constituição de família.
A falta de um estado civil próprio para o convivente representa uma verdadeira aberração jurídica, o que faz com que a união estável seja tratada como uma família de segunda classe no meio social. Cite-se que alguns juristas do mesmo modo sustentam que a situação de companheiro deve ser reconhecida como verdadeiro estado civil, caso de Álvaro Villaça Azevedo (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Teoria..., 2012, p. 13).
De qualquer forma, urge a aprovação de um dos projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional com essa finalidade, para que a discriminação seja afastada.
No Estado de São Paulo, pontue-se a feliz tentativa de se criar um estado civil decorrente da união estável por força de alterações realizadas no Provimento n. 14 da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo, em dezembro de 2012. Com as modificações, passam a ser registradas no Cartório de Registro das Pessoas Naturais as escrituras públicas e as sentenças de reconhecimento de união estável.
Em complemento, o item 113 do Provimento estabelece agora que “Os registros das sentenças declaratórias de reconhecimento, dissolução e extinção, bem como das escrituras públicas de contrato e distrato envolvendo união estável, serão feitos no Livro ‘E’, pelo Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou onde houver, no 1.° Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm ou tiveram seu último domicílio, devendo constar: a) a data do registro; b) o prenome e o sobrenome, datas de nascimento, profissão, indicação da numeração das Cédulas de Identidade, domicílio e residência dos companheiros; c) prenomes e sobrenomes dos pais; d) data e Registro Civil das Pessoas Naturais em que foram registrados os nascimentos das partes, seus casamentos e, ou, uniões estáveis anteriores, assim como os óbitos de seus outros cônjuges ou companheiros, quando houver; e) data da sentença, Vara e nome do Juiz que a proferiu, quando o caso; f) data da escritura pública, mencionando-se no último caso, o livro, a página e o Tabelionato onde foi lavrado o ato; g) regime de bens dos companheiros”.
Apesar desse importante passo, reafirme-se que o interessante seria a alteração substancial da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), com mesmo conteúdo, para que o estado civil de companheiro seja reconhecido em âmbito nacional.
Na verdade, nota-se, na prática, que há um estado civil próprio para o divorciado, que não tem mais um vínculo familiar; ao contrário da união estável em que a família está presente. Deve ficar claro que o novo estado civil de convivente deve ainda abranger as pessoas que vivem em união estável homoafetiva, reconhecida como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal, em histórica decisão de maio de 2011 (ver publicação no Informativo n. 625 daquele Tribunal).
Como se vê, a realidade atual mostra como são insuficientes os modelos clássicos de status familiar. Por certo – e aqui reside outro ponto de crítica –, o estado civil não pode ser utilizado com o intuito de preconceito ou de tratamento degradante da pessoa, como ocorreu com a mulher desquitada no passado. Em todos os casos em que a discriminação estiver presente – nos termos da vedação constante do art. 5.°, caput, da CF/1988 –, urge a necessidade de reforma legislativa.
Superada a crítica, no que concerne às características do estado civil, Maria Helena Diniz aponta a existência de normas de ordem pública, “que não podem ser modificadas pela vontade das partes, daí a sua indivisibilidade, indisponibilidade e imprescritibilidade. O estado civil é uno e indivisível, pois ninguém pode ser simultaneamente casado e solteiro, maior e menor, brasileiro e estrangeiro, salvo nos casos de dupla nacionalidade” (Curso..., 2007, p. 213).
Nesse contexto, surgem as ações de estado – aquelas relativas à essência da pessoa natural –, tidas como imprescritíveis, ou seja, não sujeitas à prescrição e à decadência. Entre tais demandas, podem ser citadas a ação de divórcio, a ação de nulidade do casamento, a ação de investigação de paternidade, a ação negatória de paternidade e a ação de alimentos. Como reforço, valem os argumentos relativos à imprescritibilidade dos direitos da personalidade, já expostos no presente capítulo. A ilustrar, colaciona-se julgado do Superior Tribunal de Justiça que estabelece tal relação: “Civil. Negatória de paternidade. Ação de Estado. Imprescritibilidade. ECA, art. 27. Aplicação. I. Firmou-se no Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que, por se cuidar de ação de estado, é imprescritível a demanda negatória de paternidade, consoante a extensão, por simetria, do princípio contido no art. 27 da Lei n. 8.069/1990, não mais prevalecendo o lapso previsto no art. 178, parágrafo 2.°, do antigo Código Civil, também agora superado pelo art. 1.061 na novel lei substantiva civil. II. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 576.185/SP, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, j. 07.05.2009, DJe 08.06.2009).
Por fim, cumpre anotar que dois dispositivos da Parte Geral do Código Civil tratam de questões registrais pertinentes ao estado civil. De início, o art. 9.° preconiza que serão registrados em registro público: I – os nascimentos, casamentos e óbitos; II – a emancipação por outorga dos pais ou por sentença do juiz; III – a interdição por incapacidade absoluta ou relativa; IV – a sentença declaratória de ausência e de morte presumida. Ato contínuo, far-se-á averbação em registro público: I – das sentenças que decretarem a nulidade ou anulação do casamento, o divórcio, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal; II – dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação (art. 10 do CC). Anote-se que havia uma previsão no último comando, relativo à averbação de atos extrajudiciais de adoção (inc. III). Diante do claro equívoco, o último preceito foi por bem revogado pela Lei 12.010/2009, pois a adoção necessita de processo judicial.
Na verdade, os dois comandos são desnecessários, pois a matéria já estava regulamentada pela Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973), respectivamente pelos seus arts. 12 e 29. No que concerne à separação judicial, repise-se que o presente autor está filiado ao entendimento de seu desaparecimento, desde julho de 2010, com a entrada em vigor da Emenda do Divórcio, conforme desenvolvimento que consta do Volume 5 da presente coleção.
Quanto à pessoa natural ou pessoa humana, surgem alguns conceitos básicos importantes:
a) Capacidade de direito – é a capacidade para ser sujeito de direito e deveres na ordem civil (art. 1.°).
b) Capacidade de fato – é a capacidade para exercer direitos. Aqueles que não detêm a capacidade de fato são denominados incapazes.
Capacidade de Direito + Capacidade de Fato = Capacidade Civil Plena
Personalidade – é a soma de aptidões ou caracteres da pessoa natural.
Legitimação – capacidade especial para celebrar determinado ato ou negócio jurídico. Ex.: o art. 1.647 do CC exige, para determinados atos e negócios, a outorga conjugal, sob pena de anulabilidade do ato praticado (art. 1.649).
Legitimidade – capacidade processual. Por vezes é utilizada como expressão sinônima de legitimação.
Incapazes – estão elencados nos arts. 3.°e 4.° do CC, conforme o quadro abaixo, devendo ser representados e assistidos, respectivamente:
Representação |
Assistência |
Absolutamente incapazes (art.3.° do CC) |
Relativamente incapazes (art.4.° do CC) |
– Menores de 16 anos (menores impúberes) – Enfermos e doentes mentais, sem discernimento para a prática dos atos da vida civil. – Pessoas que por causa transitória ou definitiva não puderem exprimir sua vontade. |
– Menores entre 16 e 18 anos (menores púberes). – Ébrios habituais, toxicômanos e pessoas com discernimento mental reduzido. – Excepcionais sem desenvolvimento completo. – Pródigos. |
– Quanto aos silvícolas (índios), sua situação não é mais tratada pela codificação. Os ausentes não são mais absolutamente incapazes. Ausência significa, na verdade, morte presumida, inexistência da pessoa (arts. 22 a 39 do CC).
– Os atos e negócios praticados pelos absolutamente incapazes sem representação são nulos (nulidade absoluta). Os celebrados pelos relativamente incapazes sem assistência são anuláveis (nulidade relativa).
– Emancipação – ato jurídico pelo qual se antecipa os efeitos da maioridade e a correspondente capacidade para momento anterior àquele em que a pessoa atinge a idade de 18 anos. A emancipação pode assumir as seguintes formas:
a) Emancipação voluntária parental – por concessão dos pais ou de um deles na falta do outro. Para que ocorra a emancipação parental, o menor deve ter, no mínimo, 16 anos completos.
b) Emancipação judicial – por sentença do juiz, em casos, por exemplo, em que um dos pais não concordar com a emancipação, contrariando um a vontade do outro.
c) Emancipação legal matrimonial – pelo casamento do menor. Interessante lembrar que a idade núbil tanto do homem quanto da mulher é de 16 anos (art. 1.517 do CC), sendo possível o casamento do menor se houver autorização dos pais ou dos seus representantes.
d) Emancipação legal, por exercício de emprego público efetivo.
e) Emancipação legal, por colação de grau em curso de ensino superior reconhecido.
f) Emancipação legal, por estabelecimento civil ou comercial ou pela existência de relação de emprego, obtendo o menor as suas economias próprias, visando a sua subsistência. Necessário que o menor tenha ao menos 16 anos.
Direitos da Personalidade – são os direitos inerentes à pessoa e à sua dignidade. Mantêm relação direta com os princípios do Direito Civil Constitucional: dignidade da pessoa humana, solidariedade social e isonomia ou igualdade em sentido amplo. Os direitos da personalidade estão relacionados com cinco ícones principais, apesar de ser esse rol meramente exemplificativo (numerus apertus):
a) vida e integridade físico-psíquica – teoricamente o bem supremo da pessoa humana;
b) honra-subjetiva (autoestima) ou objetiva (repercussão social da honra);
c) nome – sinal que representa a pessoa no meio social, com todos os seus elementos;
d) imagem-retrato (fisionomia) ou atributo (soma de qualificações);
e) intimidade – a vida privada é inviolável.
Os direitos da personalidade não podem ser concebidos conforme um rol taxativo, muito menos quanto às suas características principais. Para fins didáticos, contudo, pode-se afirmar que tais direitos são: inatos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, ilimitados, imprescritíveis, impenhoráveis e inexpropriáveis.
Diante disso é de se entender pela existência de uma cláusula geral de tutela da personalidade, pela qual deve haver tanto a prevenção quanto a reparação de qualquer lesão à pessoa e à sua dignidade. Tanto o nascituro quanto o morto possuem tais direitos.
Domicílio da Pessoa Natural – em sentido amplo, o domicílio engloba os seguintes conceitos:
a) Residência – é o local em que a pessoa se estabelece (elemento objetivo) com o intuito de permanência (elemento subjetivo).
b) Domicílio – significa qualquer local em que a pessoa pode ser sujeito de direitos e deveres na ordem civil. Por regra é o local de residência da pessoa. Eventualmente pode ser também o seu local de trabalho. Desse modo, o Código Civil consolida dois domicílios para a pessoa natural: a residência e o local do trabalho. Quanto à origem, o domicílio pode ser assim classificado:
– Domicílio voluntário: aquele fixado pela vontade da pessoa, como exercício da autonomia privada.
– Domicílio necessário ou legal: é aquele imposto pela lei, tendo em vista regras específicas que constam no Código Civil (art. 76), a saber: o domicílio dos absolutamente e relativamente incapazes (arts. 3.° e 4.° do CC) é o mesmo dos seus representantes; o domicílio do servidor público do servidor ou funcionário público é o local em que exercer, com caráter permanente, as suas funções; o domicílio do militar é o do quartel onde servir ou do comando a que se encontrar subordinado; o domicílio do marítimo ou marinheiro é o do local em que o navio estiver matriculado; o domicílio do preso é o local em que o mesmo cumpre a sua pena.
– Domicílio contratual ou convencional: é aquele previsto no art. 78 do CC, pelo qual “nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar o domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes”.
c) Habitação ou Moradia – é o local em que a pessoa eventualmente é encontrada.
Morte – põe fim à personalidade, pode ser classificada da seguinte forma:
a) Morte real – ocorre quando a pessoa tem morte encefálica. Provada por um laudo médico e pelo atestado de óbito.
b) Morte presumida – ocorre quando não há corpo presente, ou seja, não há como se provar a morte real. Presente nas seguintes hipóteses:
– Morte presumida sem declaração de ausência. O art. 7.° do CC prevê dois casos, a saber:
I) Desaparecimento do corpo da pessoa, sendo extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida – hipótese semelhante à justificação (art. 88 da Lei de Registros Públicos).
II) Desaparecimento de pessoa envolvida em campanha militar ou feito prisioneiro, não sendo encontrado até dois anos após o término da guerra.
– Morte presumida com declaração de ausência – ocorre nos casos em que a pessoa está em local incerto e não sabido (LINS) não havendo indícios das razões do seu desaparecimento. Envolve três fases específicas, com tratamento entre os arts. 22 a 39 do CC: a) curadoria dos bens do ausente; b) sucessão provisória; e c) sucessão definitiva.
Há ainda a comoriência, que não constitui uma presunção quanto à existência da morte, mas quanto ao seu momento. Se duas ou mais pessoas, parentes, ou não, falecerem em uma mesma ocasião, não havendo prova efetiva de quem faleceu primeiro, haverá presunção relativa de que o falecimento ocorreu ao mesmo tempo.
1. (MP/MG – 2011) Quanto aos Direitos da Personalidade, é INCORRETO afirmar:
(A) É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Tal ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.
(B) Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
(C) O pseudônimo adotado para atividades lícitas não goza da proteção que se dá ao nome.
(D) O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
2. (MP/SP – 86.°) Leia atentamente as seguintes assertivas sobre os direitos da personalidade.
I – O direito à intimidade é inalienável, irrenunciável e relativamente disponível.
II – O suicídio constitui um ato ilícito, embora sem natureza criminal.
III – A criança e o adolescente têm direito à tutela de imagem e intimidade, sendo, por isso, vedada a divulgação de atos infracionais que permitam a sua identificação.
IV – A circunstância de se encontrar o funcionário público no exercício de suas funções, e não em conversa ou atividade particular, afasta a incidência das normas de proteção à vida privada, com relação à divulgação da sua imagem.
Assinale a alternativa correta.
(A) Somente I, II e III são verdadeiras.
(B) Somente I, II e IV são verdadeiras.
(C) Somente I, III e IV são verdadeiras.
(D) Somente II, III e IV são verdadeiras.
(E) Todas as assertivas são verdadeiras.
3. (TJSP – Concurso 181.°) Cônjuges com vida em comum vêm a falecer em lamentável acidente de veículo, na mesma ocasião e em razão do mesmo acontecimento, sem que tenha sido possível se determinar quem morreu primeiro, conforme o laudo pericial realizado. Deixaram apenas parentes colaterais de terceiro grau, notoriamente conhecidos. Nesse caso,
(A) há que se presumir que foi o varão quem morreu primeiro, porque era pessoa já um tanto alquebrada pelo peso da idade e, assim, somente os parentes da mulher deverão ser os destinatários dos bens deixados pelas vítimas.
(B) o juiz não pode admitir a comoriência no próprio inventário, embora a contar com dados de fato disponíveis e seguros para tanto, porque a matéria deve ser definida nas vias ordinárias, sem limitações.
(C) não tendo sido possível se determinar qual das vítimas faleceu antes da outra, caberá, simplesmente, no tempo oportuno, declaração judicial de herança jacente.
(D) o juiz deverá declarar que, nas circunstâncias, não tendo sido possível se determinar qual dentre os comorientes precedeu ao outro, não ocorrerá transferência de direitos entre eles, de modo que cada falecido deixará a herança aos próprios parentes.
4. (MP/GO – 2010) De acordo com o Código Civil é correto afirmar:
(A) Admite-se a declaração de morte presumida sem a decretação de ausência.
(B) A emancipação voluntária faz cessar a responsabilidade dos pais para com atos ilícitos de filho menor.
(C) A autorização dos pais para o casamento de filho(a) menor, após a homologação judicial, em regular processo de habilitação, é irrevogável.
(D) A incapacidade relativa, dos maiores de 16 e menores de 18 anos, cessa também pela união estável.
5. (MP/GO – 2010) Em relação a pessoa natural, assinale a alternativa correta:
(A) A pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiver o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil é capaz de ter direitos e deveres na ordem civil.
(B) A emancipação voluntária é aquela realizada por concessão dos pais ou tutores e será formalizada mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro Civil de Pessoas naturais para ter eficácia.
(C) Os direitos da personalidade da pessoa natural têm como característica a indisponíbilidade absoluta, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
(D) Depende de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.
6. (TRT 14.ª Região) Examine as proposições abaixo e responda:
I. Toda pessoa tem capacidade de gozo ou de direito.
II. Os direitos da personalidade são intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis e inalienáveis.
III. O partido político, enquanto pessoa jurídica de direito privado, obriga-se pelos atos de seus administradores exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo.
IV. O Código Civil autoriza a que o juiz, de ofício ou quando provocado, em caso de abuso da personalidade jurídica, estenda os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
(A) Há apenas uma proposição verdadeira.
(B) Há apenas duas proposições verdadeiras.
(C) Há apenas três proposições verdadeiras.
(D) Todas as proposições são verdadeiras.
(E) Todas as proposições são falsas.
7. (TRT 14.ª Região) Examine as proposições abaixo e responda:
I. O servidor público tem domicílio necessário, fixado por lei, que é o lugar onde ele exerce permanentemente suas funções.
II. O espólio não é pessoa jurídica, não tendo, em consequência, personalidade jurídica.
III. Os direitos autorais são considerados bens móveis para os efeitos legais.
IV. Os bens móveis podem ser infungíveis.
(A) Há apenas uma proposição verdadeira.
(B) Há apenas duas proposições verdadeiras.
(C) Há apenas três proposições verdadeiras.
(D) Todas as proposições são verdadeiras.
(E) Todas as proposições são falsas.
8. (Ministério Público/PR – 2011) Assinale a alternativa correta:
(A) a capacidade de direito não é atribuída àqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil.
(B) a incapacidade de exercício não afeta a capacidade de direito, que é atributo de todo aquele dotado de personalidade jurídica.
(C) a antecipação da maioridade derivada do casamento gera a atribuição de plena capacidade de direito àquele menor de 18 anos que contrai núpcias, embora nada afete a sua capacidade de fato.
(D) o reconhecimento da personalidade jurídica da pessoa natural a partir do nascimento com vida significa afirmar que, antes do nascimento, a pessoa é dotada de capacidade de fato, mas não tem capacidade de direito.
(E) a interdição derivada de incapacidade absoluta enseja a suspensão da personalidade jurídica da pessoa natural, uma vez que a capacidade é a medida da personalidade.
9. (Magistratura Rondônia – PUC/PR/2011) Dadas as assertivas abaixo, assinale a única CORRETA.
(A) Tendo a pessoa jurídica diversos estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados. Já para a pessoa natural domicílio é o lugar onde está estabelecida a sua residência com ânimo definitivo. Se a pessoa não tiver residência habitual, ter-se-á por domicílio o lugar onde for encontrada.
(B) É defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Para depois da morte, contudo, é válida a disposição gratuita do próprio corpo, cuja revogação do ato, se assim pretender o doador ou seus parentes, deverá ser motivada.
(C) No negócio jurídico são lícitas as condições que o sujeitam ao puro arbítrio de uma das partes, desde que pactuado pelos contraentes.
(D) Não pode pessoalmente exercer os atos da vida civil os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade, a exemplo da embriaguês, ainda que ocasional, em que o sujeito não tenha momentaneamente o necessário discernimento para a prática desses atos.
(E) Suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, a suspensão aproveita os outros ainda que se trate de obrigação divisível.
10. (VII Exame de Ordem Unificado – FGV) A proteção da pessoa é uma tendência marcante do atual direito privado, o que leva alguns autores a conceberem a existência de uma verdadeira cláusula geral de tutela da personalidade. Nesse sentido, uma das mudanças mais celebradas do novo Código Civil foi a introdução de um capítulo próprio sobre os chamados direitos da personalidade. Em relação à disciplina legal dos direitos da personalidade no Código Civil, é correto afirmar que
(A) havendo lesão a direito da personalidade, em se tratando de morto, não é mais possível que se reclamem perdas e danos, visto que a morte põe fim à existência da pessoa natural, e os direitos personalíssimos são intransmissíveis.
(B) como regra geral, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, mas o seu exercício poderá sofrer irrestrita limitação voluntária.
(C) é permitida a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, com objetivo altruístico ou científico, para depois da morte, sendo que tal ato de disposição poderá ser revogado a qualquer tempo.
(D) em razão de sua maior visibilidade social, a proteção dos direitos da personalidade das celebridades e das chamadas pessoas públicas é mais flexível, sendo permitido utilizar o seu nome para finalidade comercial, ainda que sem prévia autorização.
11. (Ministério Público/SP – 2011) É(são) legitimado(s) para exigir a cessação de ameaça ou lesão a direitos de personalidade de uma pessoa já falecida:
(A) apenas o cônjuge sobrevivente e descendentes em linha reta.
(B) qualquer parente colateral até o quinto grau.
(C) somente parente em linha reta até o quarto grau.
(D) todos os parentes sem limitação de grau.
(E) todos os parentes colaterais até o quarto grau.
12. (MPF – 21.° Concurso – 2004/2005 – 2.ª Fase – Grupo II). Dissertação. Os direitos da personalidade. 1. Constitucionalização e personalização do direito civil. Esboço histórico. 2. Fontes normativas do direito geral de personalidade. 3. A eficácia privada dos direitos fundamentais. O texto da dissertação deve conter, no máximo, 60 linhas. O que estiver escrito a partir da 61.ª linha não será objeto de avaliação.
Resposta: Sugerimos a elaboração de dissertação, nos moldes proposto pela banca examinadora. Podem ser utilizados argumentos constantes nesse capítulo da obra ou do anterior.
13. (TJSP – Exame Oral – 2004) O nascituro pode ser considerado pessoa à luz do novo Código Civil?
Resposta: Parece-nos que o examinador seguiu o entendimento de Maria Helena Diniz, defendendo que o nascituro é pessoa.
Entendemos que os direitos da personalidade podem ser conceituados como sendo aqueles direitos inerentes à pessoa e à sua dignidade. Surgem cinco ícones principais: vida/integridade física, honra, imagem, nome e intimidade. Essas cinco expressões-chave demonstram muito bem a concepção desses direitos.
O nascituro também possui tais direitos, devendo ser enquadrado como pessoa. Aquele que foi concebido mas não nasceu possui personalidade jurídica formal: tem direito à vida, à integridade física, a alimentos, ao nome, à imagem. Conforme bem salienta César Fiúza, professor da UFMG, sem dúvidas que faltou coragem ao legislador em prever tais direitos expressamente (Código Civil anotado. Coord.: Rodrigo da Cunha Pereira. Porto Alegre: Síntese, 2004, p. 23). Mas como a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro, somos filiados aos concepcionistas (art. 2.° do CC).
Assim, não seria mais correta a afirmação de que o nascituro tem apenas expectativa de direitos. Já a personalidade jurídica material, relacionada com os direitos patrimoniais, esta sim o nascituro somente adquire com vida.
14. (TJSP – Exame Oral – 2004) Quais as características do direito ao nome?
Resposta: O nome pode ser conceituado como sendo o sinal que representa determinada pessoa perante a sociedade. Envolve, concomitantemente, ordem privada e ordem pública. Essa última, diante da proteção específica constante do capítulo do novo Código Civil que trata dos direitos da personalidade (arts. 16 a 19), sendo conceito ainda inerente à dignidade da pessoa humana (art. 1.°, III, da CF/1988).
15. (TJSP – Exame Oral – 2004) O que é legitimação?
Resposta: Consiste em uma capacidade especial para celebrar um determinado ato ou negócio jurídico, exigida pela lei. Exemplo é a outorga conjugal, exigida nos casos previstos no art. 1.647 do CC, cujo não atendimento pode levar a anulabilidade do negócio (art. 1.649 do CC).
16. (Defensoria Pública/RJ – 2005) Caio, transexual, veio a realizar cirurgia médica para a modificação de sexo. Após a intervenção, procurou a Defensoria pretendendo alterar o seu registro civil quanto ao nome e sexo, sendo certo que gostaria de manter sigilo quanto a seus dados anteriores. Pergunta-se:
a) Quais(al) as(a) medidas(a) judiciais(al) que podem(e) serem(ser) tomadas(a) em favor de Caio?
b) Quanto ao sigilo no registro civil da alteração dos seus dados, quais os dois princípios jurídico-constitucionais que se contrapõem na hipótese? Fundamente.
Resposta: No caso, cabe uma ação de retificação de registro civil, com base na Lei de Registros Públicos e no art. 13 do CC. Quanto ao sigilo no registro civil, há um conflito entre o princípio da publicidade e o da dignidade da pessoa humana, devendo prevalecer o último.
17. (Defensoria Pública do Mato Grosso – 2.ª fase – 2007) Capacidade pode ser entendida como a maior ou menor extensão dos direitos de uma pessoa. Defina capacidade de gozo ou de direito – e as restrições por ela sofridas – e capacidade de fato ou de exercício. Resposta objetivamente justificada.
Resposta: A capacidade de direito ou de gozo é aquela comum a toda pessoa humana, inerente à personalidade, e que só se perde com a morte prevista no texto legal, no sentido de que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (art. 1.° do CC). Já a capacidade de fato ou de exercício é aquela relacionada com o exercício próprio dos atos da vida civil. Toda pessoa tem capacidade de direito, mas não necessariamente a capacidade de fato, pois pode lhe faltar a consciência sã para o exercício dos atos de natureza privada. Desse modo, a capacidade de direito não pode, de maneira alguma, ser negada a qualquer pessoa, podendo somente sofrer restrições quanto ao seu exercício.
18. (Defensoria Pública do Mato Grosso – 2.ª fase – 2007). O Código Civil vigente aduz que pode-se exigir que cesse a ameaça ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Em se tratando de lesão a interesse econômico ou em caso de dano moral, quem será considerado o lesado indireto? Resposta objetiva e exemplificada em ambos os casos.
Resposta: Os lesados indiretos são aquelas pessoas previstas como legitimados no parágrafo único do art. 12 do CC, ou seja, cônjuge, ascendentes, descendentes e colaterais até quarto grau, que sofrem o dano indireto ou em ricochete, que pode ser material ou moral. Sem justificativa, a lei não prevê como legitimado o companheiro, mas ele deve ser incluído, diante da proteção constitucional da união estável (art. 226 da CF/1988). A título de exemplo, pensemos o caso de cobrança de um valor que o morto não deve (prejuízo material) ou de inscrição do nome do morto em cadastro de inadimplentes, causando-lhe um dano moral presumido.
19. (Procurador do Estado/SP – FCC/2012) Sobre os direitos da personalidade, é correto afirmar:
(A) o uso de imagem de pessoa pública com fim jornalístico depende de sua prévia autorização.
(B) é inconstitucional ato de disposição que tenha por objeto o exercício de direitos da personalidade, por serem, sem exceção, intransmissíveis e irrenunciáveis.
(C) é lícito ato altruístico de disposição do próprio corpo, total ou parcialmente, para depois da morte.
(D) herdeiro não pode pleitear perdas e danos por violação de direito da personalidade de pessoa morta, por se tratar de direito personalíssimo, intransmissível e que se extingue com a morte.
(E) o pseudônimo não goza de proteção legal em razão da proibição constitucional ao anonimato.
20. (MAGISTRATURA MINAS GERAIS – 2009) Relativamente aos Direitos da Personalidade, o art. 12 do Código Civil, sem indicar o sujeito da ação, textualmente dispõe que se pode exigir que cesse a ameaça, ou lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízos de outras sanções previstas em lei. No contexto do mencionado artigo, marque a opção CORRETA.
(A) A indeterminação do sujeito na oração do art. 12 do Código Civil tem por intuito não confundir o sujeito do direito da personalidade com o objeto do direito protegido, mas, objetivamente, o que se protege são somente direitos da personalidade avaliáveis economicamente.
(B) Quando o mencionado artigo dispõe sobre a cessação de ameaça ou lesão a direitos da personalidade, está a referir-se a direitos da personalidade objetivados no Código Civil, possibilitando a reparação material da lesão.
(C) O Código Civil não especifica de modo taxativo os direitos da personalidade. Não havendo tipificação, tem-se que o art. 12 do Código Civil elege praticamente uma cláusula genérica de proteção dos direitos da personalidade, que será integrada com os dispositivos constitucionais de proteção à honra, à imagem, ao direito à privacidade, ao nome, à integridade e à dignidade da pessoa humana, sem prejuízo da aplicação de leis especiais.
(D) Sendo considerados os direitos da personalidade direitos subjetivos, que decorrem de previsão legal, somente serão considerados como objeto de ameaça ou de lesão a direitos tipificados em lei.
21. (Magistratura/MG – VUNESP – 2012) Assinale a alternativa correta com relação aos direitos da personalidade.
(A) Os direitos da personalidade são transmissíveis e renunciáveis, podendo seu exercício sofrer limitação voluntária, salvo se a lei excepcionar.
(B) Para proteção da utilização da imagem não autorizada de pessoa morta, nas hipóteses da lei civil, é parte legítima para requerer a medida judicial protetiva somente o cônjuge sobrevivo.
(C) É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição onerosa do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.
(D) Terá legitimação para requerer medida judicial para que cesse lesão a direito da personalidade do morto o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente na linha reta, ou colateral até o quarto grau.
22. (Magistratura/PR – 2012) Com base na Parte Geral do Código Civil brasileiro, é correto afirmar:
(A) No que concerne a matéria de provas, pode-se dizer que as presunções legais não são admitidas nos casos em que a lei exclui a prova testemunhal.
(B) Os bens públicos dominicais não estão sujeitos a usucapião e não podem ser alienados.
(C) Em relação às fundações, caberá ao Ministério Público Federal velar por elas caso a fundação atue em mais de um estado.
(D) Os contratos escritos podem conter cláusula que especifique o domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações resultantes do contrato.
23. (Delegado de Polícia/RJ – FUNCAB – 2013) No que tange à disciplina dos direitos da personalidade no Código Civil, assinale a alternativa INCORRETA:
(A) Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
(B) Pode a pessoa ser constrangida a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica.
(C) O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.
(D) Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
(E) A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
24 (MPF – 26° – Procurador da República/2012) Quanto ao nascituro, é correto dizer que: I. Pode ser objeto de reconhecimento voluntário de filiação; II. A proteção legal atinge ao próprio embrião; III. Os pais podem efetuar doação em seu benefício; IV. Já detém os requisitos legais da personalidade. Das proposições acima:
(A) I e III estão corretas;
(B) II e IV estão corretas;
(C) II e III estão corretas;
(D) I e IV estão corretas.
01 – C |
02 – E |
03 – D |
04 – A |
05 – A |
06 – C |
07 – D |
08 – B |
09 – A |
10 – C |
11 – E |
19 – C |
20 – C |
21 – D |
22 – D |
23 – B |
24 – A |
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1 Parte dos entendimentos dessa seção consta de artigo que foi escrito em coautoria com Márcio Araújo Opromolla, intitulado Direito civil e Constituição (Constituição Federal: 15 anos. Coord. André Ramos Tavares, Olavo A. V. Alves Ferreira e Pedro Lenza. São Paulo: Método, 2003). Agradecemos e deixamos crédito ao coautor, cuja contribuição para o assunto foi fundamental.