Sumário: 15.1 Conceito e natureza jurídica – 15.2 Regras gerais para o contrato de transporte – 15.3 Do transporte de pessoas – 15.4 Do transporte de coisas – 15.5 Resumo esquemático – 15.6 Questões correlatas – Gabarito.
O contrato de transporte passou a ser tipificado pelo Código Civil de 2002 entre os seus arts. 730 a 756. Trata-se do contrato pelo qual alguém (o transportador) se obriga, mediante uma determinada remuneração, a transportar de um local para outras pessoas ou coisas, por meio terrestre (rodoviário e ferroviário), aquático (marítimo, fluvial e lacustre) ou aéreo.
O que se percebe é que o Código Civil acaba ordenando as regras de transporte, de forma parcial, como prevê a Constituição Federal. Segundo o art. 178 da CF/1988, “a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. Parágrafo único. Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras”. Analisando o Código Civil de 2002, pode-se afirmar que o legislador da atual codificação atendeu a esse mandamento constitucional.
No que tange a esse tratamento previsto na nova codificação privada, houve uma subdivisão em três seções. A primeira traz regras gerais para o contrato em questão, as demais versam sobre o transporte de pessoas e o transporte de coisas, respectivamente. Essa divisão metodológica também orientará o presente capítulo.
O conceito de contrato de transporte consta do art. 730 do CC: “Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante remuneração, a transportar de um lugar para outro, pessoas ou coisas”. Aquele que realiza o transporte é o transportador, a pessoa transportada é o passageiro ou viajante, enquanto a pessoa que entrega a coisa a ser transportada é o expedidor. O que identifica o contrato é uma obrigação de resultado do transportador, diante da cláusula de incolumidade de levar a pessoa ou a coisa ao destino, com total segurança.
Filia-se a Carlos Roberto Gonçalves, para quem, embora seja o transporte um dos negócios jurídicos mais comuns na prática, não havia uma legislação tão específica, na qual se mencionasse, com riqueza de detalhes, as regras basilares do contrato de transporte (Direito..., 2004, p. 450). Também se concorda que o Código Civil de 1916 era deficiente, pois não regulamentava tal espécie de contrato. Ensina o doutrinador que o antigo Código Comercial, de forma sucinta e escassa, foi a primeira norma a discipliná-lo. Posteriormente ao Código Comercial, veio a regulamentação do transporte ferroviário (Decreto-lei 2.681/1912), que se estendeu por analogia a todos os meios de transporte. Entendemos que se encontra revogado o Código Comercial, no que concerne a esse contrato, diante da unificação parcial do Direito Privado e pelo que consta do art. 2.045 do CC.
Ao contrato de transporte aplica-se o Código Civil e, havendo uma relação jurídica de consumo, como é comum, o CDC (Lei 8.078/1990). Desse modo, deve-se buscar um diálogo das fontes entre as duas leis no que tange a esse contrato, sobretudo o diálogo de complementaridade. Além disso, não se pode excluir a aplicação de leis específicas importantes, como é o caso do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/1986).
Quanto à sua natureza jurídica, o contrato de transporte é bilateral ou sinalagmático, pois gera direitos e deveres proporcionais para ambas as partes. Isso tanto para o transportador (que deverá conduzir a coisa ou pessoa de um lugar para outro) quanto para o passageiro ou expedidor (que terá a obrigação de pagar o preço convencionado pelas partes).
O contrato é consensual, pois tem aperfeiçoamento com a manifestação de vontades dos contraentes, independentemente da entrega coisa ou do embarque do passageiro. Nesse sentido, Sílvio de Salvo Venosa ensina que a entrega da coisa ou o embarque do passageiro interessam à execução do contato, não ao seu aperfeiçoamento ou validade (Direito..., 2005, p. 352). Por isso, não se pode falar que o contrato é real.
O contrato é ainda comutativo, pois as partes já sabem de imediato quais são as suas prestações. A álea não é fator determinante do contrato de transporte, apesar de existente o risco.
Na grande maioria das vezes, o contrato constitui-se em um típico contrato de adesão, por não estar presente a plena discussão das suas cláusulas. O transportador acaba por impor o conteúdo do negócio, restando à outra parte duas opções: aceitar ou não os seus termos (take it or leave it, como se afirma nos países de língua inglesa). Assumindo o contrato essa forma, deverão ser aplicadas as normas de proteção do aderente constantes do Código Civil em vigor (arts. 423 e 424 – princípios da equivalência material e da função social dos contratos, em sua eficácia interna). Pode-se bem visualizar tal afirmação, no exemplo dado por Carlos Roberto Gonçalves, da seguinte forma: “quem toma um ônibus, ou qualquer outro meio de transporte, tacitamente celebra um contrato de adesão com a empresa transportadora. Com o pagamento da passagem, o transportado adere ao regulamento da empresa. Esta, implicitamente, assume a obrigação de conduzi-lo ao seu destino, são e salvo. Se no trajeto ocorre um acidente e o passageiro fica ferido, configura-se o inadimplemento contratual, que acarreta a responsabilidade de indenizar, nos termos dos arts. 389 e 734 do CC” (Direito..., 2004, p. 453).
Entretanto, em alguns casos excepcionais, principalmente quando o expedidor de uma coisa for uma empresa, o contrato pode ser plenamente discutido, assumindo a forma paritária ou negociada.
Sendo o transportado ou o expedidor destinatário final do serviço, preenchendo-se os requisitos dos arts. 2.° e 3.° da Lei 8.078/1990, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, visando à proteção da parte vulnerável, o que é comum na jurisprudência (por todos: STJ, REsp 286.441/RS, Rel. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 07.11.2002, DJ 03.02.2003, p. 315). Repise-se, contudo, que o contrato de adesão não se confunde com o contrato de consumo, conforme aqui exposto (Enunciado n. 171 CJF/STJ).
Como não há qualquer formalidade prevista para o contrato, o mesmo é tido como negócio informal ou não solene.
Conforme ensinam Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, o contrato de transporte não se confunde com o de praticagem. O último consiste “no serviço auxiliar do transporte aquaviário, que tem por fim a condução de embarcações em zonas perigosas à navegação (trechos de costa, barras, portos, canais, lagoas, rios), realizadas por pessoas conhecedoras do local, denominados ‘práticos’ (CCom., art. 507)” (Código Civil..., 2006, p. 518). Existe no último caso não um contrato de transporte, mas uma prestação de serviços.
Superada a conceituação do transporte e a análise de sua natureza jurídica, segue a abordagem das regras gerais e específicas quanto ao contrato em questão.
Iniciando a análise das regras gerais previstas para o contrato de transporte, preconiza o art. 731 do CC/2002 que “o transporte exercido em virtude de autorização, permissão ou concessão, rege-se pelas normas regulamentares e pelo que foi estabelecido naqueles atos, sem prejuízo do disposto neste Código”. A norma está sintonizada com o art. 175 da CF/1988, pelo qual incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Dessa forma, haverá a aplicação concomitante das normas de Direito Administrativo, particularmente aquelas relacionadas à concessão do serviço público, com as normas previstas no Código Civil de 2002. Anote-se, ademais, que o serviço público também é considerado um serviço de consumo, nos termos do art. 22 do CDC. A título de exemplo, haverá relação de consumo entre passageiro e empresa privada prestadora do serviço público de transporte (STJ, REsp 226.286/RJ, 1999/0071157-2, DJ 24.09.2001, RSTJ 151/197).
Além dessa relação com o Direito Administrativo, o Código Civil consagra uma relação com o Direito Internacional. Segundo o art. 732 do CC, serão aplicadas as normas previstas na legislação especial e em tratados e convenções internacionais ao contrato de transporte, desde que as mesmas não contrariem o que consta da codificação vigente. Ilustrando, no caso de transporte aéreo, pode ser aplicado o Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA – Lei 7.656/1986), desde que o mesmo não entre em conflito com o Código Civil em vigor.
O dispositivo do Código Civil em questão merece alguns comentários, diante da sua grande relevância prática.
A exemplificar a aplicação desse comando legal, lembramos a questão envolvendo a Convenção de Varsóvia e a Convenção de Montreal, tratados internacionais dos quais nosso País é signatário e que preveem limitações de indenização em casos de perda ou atraso de voo e extravio de bagagem em viagens internacionais (transporte aéreo). A Convenção de Varsóvia, que sempre teve entre nós força de lei ordinária, era – e continua sendo – utilizada pelas companhias aéreas como justificativa para a redução das indenizações pretendidas pelos passageiros. Anote-se que o Brasil é signatário ainda da Convenção de Montreal e esta entrou em vigor no País no ano de 2006, em substituição ao primeiro tratado.
Pois bem, como é cediço, o art. 6.°, VI e VIII, da Lei 8.078/1990 consagra o princípio da reparação integral de danos, pelo qual tem direito o consumidor ao ressarcimento integral pelos prejuízos materiais e imateriais causados pelo fornecimento de produtos, prestação de serviços ou má informação a eles relacionados. Essa também é a lógica interpretativa decorrente dos arts. 18, 19 e 20 do CDC, que trazem a previsão das perdas e danos para os casos de mau fornecimento ou má prestação de um serviço. Ora, não há dúvida de que no caso de viagem aérea, seja nacional ou internacional, haverá relação de consumo, nos termos dos arts. 2.° e 3.° do CDC.
Em um primeiro momento, existindo danos materiais no caso concreto, nas modalidades de danos emergentes (aqueles já suportados pelo prejudicado, o que a pessoa efetivamente perdeu) ou lucros cessantes (tudo aquilo que o lesado, razoavelmente, deixou de lucrar), terá o consumidor direito à integral reparação, sendo vedada qualquer tipo de tarifação prevista, seja pelo entendimento jurisprudencial, seja por Convenção Internacional. Seguindo essa linha, o Superior Tribunal de Justiça conclui que a Convenção de Varsóvia não deve prevalecer:
“Civil e processual. Ação de indenização. Atraso de voo internacional. Indenização. Ilegitimidade passiva da empresa aérea. ‘Contrato de compartilhamento’. Revisão. Impossibilidade. Súmulas 5 e 7-STJ. Dano moral. Valor. Convenção de Varsóvia. CDC. Prevalência. Tarifação não mais prevalente. Valor ainda assim excessivo. Redução. I. A questão acerca da transferência da responsabilidade para outra transportadora, que opera trecho da viagem, contrariamente ao entendimento das instâncias ordinárias, enfrenta o óbice das Súmulas 5 e 7-STJ. II. Após o advento do Código de Defesa do Consumidor, não mais prevalece, para efeito indenizatório, a tarifação prevista tanto na Convenção de Varsóvia, quanto no Código Brasileiro de Aeronáutica, segundo o entendimento pacificado no âmbito da 2.a Seção do STJ. Precedentes do STJ. III. Não obstante a infraestrutura dos modernos aeroportos ou a disponibilização de hotéis e transporte adequados, tal não se revela suficiente para elidir o dano moral quando o atraso no voo se configura excessivo, a gerar pesado desconforto e aflição ao passageiro, extrapolando a situação de mera vicissitude, plenamente suportável. IV. Não oferecido o suporte necessário para atenuar tais situações, como na hipótese dos autos, impõe-se sanção pecuniária maior do que o parâmetro adotado em casos análogos, sem contudo, chegar-se a excesso que venha a produzir enriquecimento sem causa. V. Recurso especial parcialmente conhecido e provido em parte, para reduzir a indenização a patamar razoável” (STJ, REsp 740.968/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4.a Turma, j. 11.09.2007, DJ 12.11.2007, p. 221).
“Civil e processual. Ação de indenização. Transporte aéreo. Extravio de mercadoria. Cobertura securitária. Reembolso. Tarifação afastada. Incidência das normas do CDC. I – Pertinente a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor para afastar a antiga tarifação na indenização por perda de mercadoria em transporte aéreo, prevista na Convenção de Varsóvia e no Código Brasileiro de Aeronáutica. II – Precedentes do STJ. III – ‘A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial’ – Súmula 7/STJ. IV – A ausência de prequestionamento torna o recurso especial carecedor do requisito da admissibilidade. V – Agravo improvido” (Superior Tribunal de Justiça, AGA 252.632/SP, j. 07.08.2001, 4.a Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 04.02.2002, p. 373). Veja também: STJ – REsp 209.527/RJ (JBCC 189/200), REsp 257.699/SP, REsp 257.298/SP.
Logicamente, pelo que consta no art. 1.° da própria Lei 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor é norma de ordem pública e interesse social, devendo prevalecer sobre os tratados internacionais e demais fontes do direito internacional público, o que também é aplicação do art. 17 da Lei de Introdução. Dessa forma, a autonomia privada manifestada em um tratado internacional encontra limitações nas normas de ordem pública, como é o caso da Lei Consumerista. Anote-se que o raciocínio deve ser exatamente o mesmo diante da recente Convenção de Montreal.
Mas no presente momento pode surgir a seguinte dúvida interrogativa: qual a relação entre o CDC e o CC, uma vez que o art. 732 do CC estabelece que os tratados não podem prevalecer em relação ao Código Civil, o mesmo ocorrendo em relação às leis especiais?
Pois bem, essa relação decorre da aplicação da tese do diálogo das fontes, que busca uma complementaridade entre as duas leis, principalmente visando a proteger o consumidor, a parte vulnerável da relação contratual. Nesse diapasão, houve uma forte aproximação principiológica entre as duas leis, no que tange aos contratos, eis que ambas são incorporadoras de uma nova teoria geral dos contratos (Enunciado n. 167 CJF/STJ).
Essa aproximação ocorre em virtude dos princípios sociais contratuais, caso da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, que podem ser invocados contra eventual pedido de limitação da indenização pelo causador do dano, constante da Convenção de Varsóvia ou de Montreal, visando, dessa forma, à busca da justiça contratual. Por isso o art. 732 do CC não prejudica o atual entendimento do STJ, que é pela não aplicação do referido tratado internacional.
Em suma, o art. 732 do CC igualmente não prejudica a aplicação do CDC, havendo uma relação jurídica de consumo no contrato de transporte. Nesse sentido, na IV Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado n. 369 CJF/STJ, com a seguinte redação: “Diante do preceito constante no art. 732 do Código Civil, teleologicamente e em uma visão constitucional de unidade do sistema, quando o contrato de transporte constituir uma relação de consumo, aplicam-se as normas do Código de Defesa do Consumidor que forem mais benéficas a este”. O enunciado doutrinário confirma a tese já sustentada na primeira edição da presente obra, tendo como principal defensora naquele evento a professora Claudia Lima Marques, precursora da tese do diálogo das fontes no Brasil.
Em complemento, merece destaque a argumentação desenvolvida por Marco Fábio Morsello em sua tese de doutoramento, no sentido de que a norma consumerista sempre deve prevalecer, por seu caráter mais especial, tendo o que ele denomina como segmentação horizontal. De outra forma, sustenta que a matéria consumerista é agrupada pela função e não pelo objeto (Responsabilidade..., 2006, p. 419). Por fim, para a prevalência do Código Consumerista, é interessante a sua tese no sentido de que a proteção dos consumidores tem força normativa constitucional, pela previsão do art. 5.°, XXII, da CF/1988 (MORSELLO, Marco Fábio. Responsabilidade..., 2006, p. 419).
Ainda quanto à aplicação do art. 732 do CC, especificamente quanto às leis especiais, Araken de Assis traz outros exemplos:
“Por conseguinte, as disposições da Lei 7.565/1986 incompatíveis com os princípios da responsabilidade civil consagrada (v.g., a exigência de culpa grave ou dolo para afastar a avaliação a forfait do dano: art. 248), no contrato de transporte, nos arts. 734 a 736, se encontram revogadas. Da responsabilidade civil cuidou, principalmente, o diploma civil. Não se encontra recepcionada, nesta linha de raciocínio, o art. 22 da Lei 9.611/1998, que estipula o exíguo prazo de um ano para ação de responsabilidade, ‘contado da data da entrega da mercadoria no ponto de destino ou, caso isso não ocorra, do nonagésimo dia após o prazo referido para a referida entrega’. O art. 206, § 3.°, V, do CC estabelece prazo de três anos para a prescrição da ‘pretensão de reparação civil’. A legislação especial tem caráter residual e supletivo em aspectos secundários. Por exemplo, vigoram os requisitos do conhecimento de transporte aéreo (art. 235, I a XIII, da Lei 7.656/1986). É claro que, tratando-se de relação de consumo, aplica-se a Lei 8.078/1990, e não o Código Civil vigente.
Esta orientação se estende à Lei 9.432/1997, que ordena o transporte aquaviário; à Lei 9.611/1998, que reestrutura o transporte multimodal de cargas; à Lei 10.233/2001, que reestrutura o transporte terrestre e aquaviário; à Lei 9.4787/1997, relativamente aos arts. 56 a 59, que contemplaram o transporte de petróleo; ao Dec. 1.832/1996, que regulamenta o transporte ferroviário; ao Dec. 96.044/1988, que regulamenta o transporte rodoviário de transportes perigosos; ao Dec. 98.973/1990, relativo ao transporte ferroviário destes últimos produtos, e quaisquer outros diplomas análogos” (Contratos..., 2005, p. 310).
Pois bem, o que o último doutrinador quer dizer é que o Código Civil de 2002 é imperativo no sentido da sua prevalência. E, pelo que consta do art. 732 do CC, não se aplica o critério da especialidade, que prevalece sobre o cronológico, a guiar a conclusão de que as normas especiais anteriores continuam em vigor, prevalecendo sobre as normas gerais posteriores. Reconhece-se, na verdade, que as normas constantes da atual codificação também são especiais, razão de sua prevalência. Entretanto, o Código Civil não pode afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nas situações em que a última lei foi mais favorável aos consumidores nos contratos de transporte. Reforçando a tese, cumpre assinalar a proteção constitucional dos consumidores, prevista no art. 5.°, XXII, do Texto Maior.
O art. 733 do CC trata do transporte cumulativo, ou seja, aquele em que vários transportadores se obrigam a cumprir o contrato por um determinado percurso. Em complemento, o art. 756 do Código Civil prevê que no transporte cumulativo todos os transportadores respondem solidariamente. A regra deve ser aplicada tanto para o transporte de pessoas quanto de coisas, o que pode ser retirado da análise do próprio art. 733 do CC.
Em casos tais, havendo danos a pessoas ou a coisas, haverá responsabilidade objetiva, pois a obrigação de cada transportador é de resultado (cláusula de incolumidade). Para essa responsabilização independente de culpa ainda pode ser invocado o Código de Defesa do Consumidor, em diálogo das fontes.
Caso esteja presente dano resultante do atraso ou da interrupção da viagem, este será determinado em razão da totalidade do percurso, diante da indivisibilidade da obrigação dos transportadores (art. 733, § 1.°, do CC). Ocorrendo a substituição de um transportador por outro nessa mesma forma de contratação, a responsabilidade solidária também será estendida ao substituto (art. 733, § 2.°, do CC). Nesse último caso, há o que a doutrina denomina como contratação de subtransporte (Assis, Araken de. Contratos..., 2005, p. 317).
Superada a análise das regras gerais previstas para o contrato em questão, passa-se ao estudo específico do transporte de pessoas e de coisas.
O transporte de pessoas é aquele pelo qual o transportador se obriga a levar uma pessoa e a sua bagagem até o destino, com total segurança, mantendo incólume os seus aspectos físicos e patrimoniais. São partes no contrato o transportador, que é aquele que se obriga a realizar o transporte, e o passageiro, aquele que contrata o transporte, ou seja, aquele que será transportado mediante o pagamento do preço, denominado passagem.
A obrigação assumida pelo transportador é sempre de resultado, justamente diante dessa cláusula de incolumidade, o que fundamenta a sua responsabilização independentemente de culpa, em caso de prejuízo (responsabilidade objetiva). Nesse sentido ensina Washington de Barros Monteiro que “é dever do transportador levar o passageiro são e salvo a seu destino, e responderá pelos danos a ele causados, bem como à sua bagagem. Em todo contrato de transporte está implícita a cláusula de incolumidade. Ora, se um passageiro contrata uma empresa para levá-lo ao Rio de Janeiro, subentende-se que ele quer chegar ao seu destino por inteiro e não ‘em tiras’” (Curso..., 2003, p. 326).
Essa responsabilidade objetiva também pode ser evidenciada pelo art. 734 do CC, que prevê que o transportador somente não responde nos casos de força maior (evento previsível, mas inevitável). O caso fortuito (evento totalmente imprevisível) também constitui excludente, até porque muitos doutrinadores e a própria jurisprudência consideram as duas expressões como sinônimas (STJ, REsp 259.261/SP, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 13.09.2000, DJ 16.10.2000, p. 316).
Vale relembrar aqui questão ventilada no Volume 2 desta coleção, a respeito do assalto à mão armada como excludente de responsabilidade do transportador. Como visto, o STJ acabou por considerar o assalto como fato desconexo ao contrato de transporte, a excluir a responsabilidade da transportadora. Em suma, consolidou-se o entendimento de que o assalto está fora do risco do negócio ou do risco do empreendimento da transportadora.
Primeiramente, entendendo pela caracterização como caso fortuito e força maior – tidos também nesse acórdão, como expressões sinônimas –, transcreve-se o seguinte julgado da 3.a Turma do STJ, em caso envolvendo transporte de mercadorias:
“Transporte de mercadoria. Roubo. Responsabilidade da transportadora. O roubo de mercadoria praticado mediante ameaça exercida com arma de fogo é fato desconexo do contrato de transporte e, sendo inevitável, diante das cautelas exigíveis da transportadora, constitui-se em caso fortuito ou força maior, excluindo a responsabilidade dessa pelos danos causados. Agravo não provido” (STJ, AGRESP 470.520/SP (200201079819), 499.790, j. 26.06.2003, 3.a Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 25.08.2003, p. 301).
Mas existem julgados anteriores apontando para o dever de indenizar do transportador nos casos de assaltos à mão armada em transporte coletivo. Da 4.a Turma do STJ destaque-se o seguinte:
“Responsabilidade civil do transportador. Assalto no interior de ônibus. Lesão irreversível em passageiro. Recurso especial conhecido pela divergência, mas desprovido pelas peculiaridades da espécie. Tendo se tornado fato comum e corriqueiro, sobretudo em determinadas cidades e zonas tidas como perigosas, o assalto no interior do ônibus já não pode mais ser genericamente qualificado como fato extraordinário e imprevisível na execução do contrato de transporte, ensejando maior precaução por parte das empresas responsáveis por esse tipo de serviço, a fim de dar maior garantia e incolumidade aos passageiros. Recurso especial conhecido pela divergência, mas desprovido” (STJ, REsp 232.649/SP (199900875729), 494.515, j. 15.08.2002, 4.a Turma, Rel. p/ acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, DJ 30.06.2003, p. 250. Veja: (Voto vencido – Caso fortuito – Força maior) STJ – REsp 30.992/RJ (RSTJ 62/271), 13.351/RJ (RSTJ 29/507), 35.436/SP (RSTJ 52/208), 74.534/RJ (REVJUR 238/51), 286.110/RJ, 118.123/SP (LEX-STJ 120/147) STF – RE 88.408/RJ).
A questão era de grande debate e dividia a 3.a e 4.a Turmas daquele Superior Tribunal.
Foi utilizado o verbo destacado no passado, pois julgados prolatados nos anos de 2005 e 2006, da própria 4.a Turma do Superior Tribunal de Justiça, sepultaram a discussão ao reconhecer o assalto ao meio de transporte como sendo força maior (evento previsível, mas inevitável), mesmo nos casos de transporte de pessoas:
“Civil. Indenização. Transporte coletivo (ônibus). Assalto à mão armada seguido de morte de passageiro. Força maior. Exclusão da responsabilidade da transportadora. 1. A morte decorrente de assalto à mão armada, dentro de ônibus, por se apresentar como fato totalmente estranho ao serviço de transporte (força maior), constitui-se em causa excludente da responsabilidade da empresa concessionária do serviço público. 2. Entendimento pacificado pela Segunda Seção. 3. Recurso especial conhecido e provido” (STJ, REsp 783.743/RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4.a Turma, j. 12.12.2005, DJ 01.02.2006, p. 571).
“Processo civil. Recurso especial. Indenização por danos morais e estéticos. Assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo. Força maior. Caso fortuito. Exclusão de responsabilidade da empresa transportadora. Configuração. 1. Este Tribunal já proclamou o entendimento de que, fato inteiramente estranho ao transporte (assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo), constitui caso fortuito, excludente de responsabilidade da empresa transportadora. 2. Entendimento pacificado pela eg. Segunda Seção desta Corte. Precedentes: REsp 435.865/RJ; REsp 402.227/RJ; REsp 331.801/RJ; REsp 468.900/RJ; REsp 268.110/RJ. 3. Recurso conhecido e provido” (STJ, REsp 714.728/MT, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 4.a Turma, j. 12.12.2005, DJ 01.02.2006, p. 566).
Pois bem, conforme apontado na primeira edição desta obra, o entendimento anterior do STJ – o de não exclusão de responsabilidade da transportadora – concluía que os ônibus que rodavam em regiões perigosas das grandes cidades deveriam ser blindados e escoltados! A conclusão, portanto, fugia da lógica do razoável. Por isso é que não se alinhava com aquele entendimento anterior. Ora, quem deve zelar pela segurança pública é o Estado e não os entes privados. Por isso é que a tese da responsabilidade subjetiva do Estado, para os casos de omissão (caso da falta de segurança), merece ser urgentemente rediscutida.
Ainda quanto ao art. 734, caput, do CC, o dispositivo não considera como excludente a cláusula de não indenizar (cláusula excludente de responsabilidade ou cláusula de irresponsabilidade), previsão contratual inserida no instrumento do negócio que exclui a responsabilidade da transportadora. O art. 734, caput, do CC apenas confirma o entendimento jurisprudencial anterior, consubstanciado na Súmula 161 do STF, segundo a qual: “Em contrato de transporte é inoperante a cláusula de não indenizar”.
A referida súmula pode até parecer desnecessária atualmente, mas não o é, podendo ser invocada para os casos de transporte de coisas, uma vez que o art. 734 do CC trata do transporte de pessoas. Conclui-se que a cláusula de não indenizar deve ser considerada nula também para o transporte de mercadorias. Para tanto, podem igualmente ser invocados os arts. 25 e 51, I, do CDC e o art. 424 do CC, eis que o contrato em questão é de consumo e de adesão, na grande maioria das vezes. A nulidade dessa cláusula é evidente, pois o emitente renuncia a um direito que lhe é inerente como parte contratual: o direito à segurança.
O parágrafo único do art. 734 do CC merece maiores digressões, in verbis: “É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização”. O dispositivo visa a valorizar a boa-fé objetiva no contrato de transporte, particularmente quanto ao dever do passageiro de informar o conteúdo da sua bagagem para que o transportador possa prefixar eventual valor indenizatório.
Dúvida resta quanto à incompatibilidade desse dispositivo em relação ao CDC na hipótese de existir relação de consumo no contrato de transporte, porque o art. 6.°, VI e VIII, consagra o princípio da reparação integral de danos, o que afasta qualquer possibilidade de tarifação da indenização, principalmente por força de contrato.
Inicialmente, deve-se entender que o art. 734 do CC não torna obrigatória ao consumidor-passageiro a referida declaração. Na verdade, o dispositivo enuncia que é lícito exigir a declaração do valor da bagagem, visando a facilitar a prova do prejuízo sofrido em eventual demanda. Não sendo feita a referida declaração, torna-se difícil comprovar o que está dentro da bagagem. Para tanto, pode o consumidor utilizar-se da inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6.°, VIII, do CDC? O Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que sim, ou seja, pela aplicação dessa inversão em casos tais:
“Processo civil. Civil. Recurso especial. Indenização por danos materiais e morais. Extravio de bagagem. Empresa aérea. Danos materiais comprovados e devidos. Inversão do ônus da prova. Art. 6.°, VIII, do CDC. Danos morais. Ocorrência. Indenização. Razoabilidade do quantum fixado. 1. Divergência jurisprudencial comprovada, nos termos do art. 541, parágrafo único, do CPC, e art. 255 e parágrafo, do Regimento Interno desta Corte. 2. Com base nos documentos comprobatórios trazidos aos autos, tanto a r. sentença singular quanto o eg. Tribunal de origem, tiveram por verossímil as alegações do autor – uma vez que a relação dos bens extraviados mostra-se compatível com a natureza e duração da viagem – aplicando, então, a regra do art. 6.°, VIII, do CDC, invertendo-se o ônus da prova. 3. A inversão do ônus da prova, de acordo com o art. 6.°, VIII, do CDC, fica subordinada ao critério do julgador, quanto às condições de verossimilhança da alegação e de hipossuficiência, segundo as regras da experiência e de exame fático dos autos. Tendo o Tribunal a quo julgado que tais condições se fizeram presente, o reexame deste tópico é inviável nesta via especial. Óbice da Súmula 07 desta Corte. 4. Como já decidiram ambas as Turmas que integram a Segunda Seção desta Corte, somente é dado, ao STJ, em sede de recurso especial, alterar o quantum da indenização por danos morais, quando ínfimo ou exagerado o valor. 5. Considerando-se as peculiaridades fáticas assentadas nas instâncias ordinárias e os parâmetros adotados nesta Corte em casos semelhantes a este, de extravio de bagagem em transporte aéreo, o valor fixado pelo Tribunal de origem, a título de indenização por danos morais, mostra-se excessivo, não se limitando à compensação dos prejuízos advindos do evento danoso, pelo que se impõe a respectiva redução a R$ 4.000,00 (quatro mil reais). 6. Recurso conhecido e provido” (STJ, REsp 696.408/MT, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 4.a Turma, j. 07.06.2005, DJ 29.05.2006, p. 254).
“Responsabilidade civil. Extravio de bagagem. Danos materiais e morais. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Retorno ao local de residência. Precedente da Terceira Turma. 1. Já está assentado na Seção de Direito Privado que o Código de Defesa do Consumidor incide em caso de indenização decorrente de extravio de bagagem. 2. O fato de as notas fiscais das compras perdidas em razão do extravio estarem em língua estrangeira, não desqualifica a indenização, considerando a existência de documento nacional de reclamação com a indicação dos artigos perdidos ou danificados que menciona os valores respectivos, cabendo à empresa provar em sentido contrário, não combatida a inversão do ônus da prova acolhida na sentença. 3. Precedente da Terceira Turma decidiu que não se justifica a ‘reparação por dano moral apenas porque a passageira, que viajara para a cidade em que reside, teve o incômodo de adquirir roupas e objetos perdidos’ (REsp 158.535/PB, Relator para o acórdão o Senhor Min. Eduardo Ribeiro, DJ 09.10.2000). 4. Recurso especial conhecido e provido, em parte” (Superior Tribunal de Justiça, REsp 488.087/RJ; j. 18.09.2003, 3.a Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ 17.11.2003, p. 322; RT 823/171). VEJA: (Bagagem – Transporte aéreo – Aplicação – Código de Defesa do Consumidor) STJ – REsp 300.190/RJ (RT 803/177), REsp 169.000/RJ (RDR 18/291), REsp 173.526/SP, REsp 209.527/RJ (JBCC 189/200, RDTJRJ 50/106), REsp 154.943/DF (RSTJ 143/274) (Descabimento – Indenização – Dano moral – Passageiro) STJ – REsp 158.535/PB (RJADCOAS 20/104, JBCC 185/346).
Seguindo essa linha de raciocínio favorável ao consumidor, percebe-se que o art. 734, parágrafo único, do CC, em certo sentido, entra em colisão com a proteção do destinatário final do serviço, ao estabelecer que ele tem o dever de declarar o conteúdo de sua bagagem, sob pena de perder o direito à indenização. Apesar de o dispositivo não dizer isso expressamente, poder-se-ia supor dessa forma. Trata-se de uma mera suposição, uma vez que o passageiro, como consumidor, tem direito à indenização integral. Assim deve ser interpretada a suposta controvérsia.
De qualquer forma, um entendimento contrário poderia sustentar que o art. 734, parágrafo único, do CC deveria se sobrepor à Lei 8.078/1990, segundo o que ordena o art. 732 da mesma codificação, outrora comentado (prevalência do Código Civil).
Esse argumento pode ser afastado pela aplicação da tese do diálogo das fontes e diante dos princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, sempre mencionados e que conduzem a uma interpretação contratual mais favorável à parte vulnerável da relação negocial. Além disso, para ficar bem claro, cumpre mais uma vez transcrever o Enunciado n. 369 CJF/STJ, aprovado na IV Jornada de Direito Civil: “Diante do preceito constante no art. 732 do Código Civil, teleologicamente e em uma visão constitucional de unidade do sistema, quando o contrato de transporte constituir uma relação de consumo, aplicam-se as normas do Código de Defesa do Consumidor que forem mais benéficas a este”.
Isso vale em relação aos danos materiais, particularmente quanto ao valor da coisa em si. No que concerne aos danos morais, no caso da coisa ser de estima, eventual reparação não pode ser tarifada nem mesmo por lei. A tarifação ou tabelamento do dano moral entra em conflito com o princípio da especialidade, que consta da segunda parte da isonomia constitucional (a lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais – art. 5.°, caput, da CF/1988).
De qualquer modo, vale o alerta constante da parte final da última ementa transcrita, no sentido de que o STJ vem entendendo que a mera perda da bagagem não gera dano moral. Nesse ponto, é preciso provar a lesão a direito da personalidade pelo extravio do conteúdo da bagagem ou que ali estava um objeto de estima. Entretanto, ressalte-se que o mesmo STJ já entendeu pela existência de danos morais por perda de bagagem em inúmeros casos. Por todos, ilustre-se:
“Transporte aéreo. Extravio temporário e violação de bagagens. Danos morais. Fixação. Razoabilidade e proporcionalidade verificadas. Revisão. Reexame de prova. Inadmissibilidade. Se o valor fixado a título de danos morais atende aos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, não se admite a revisão do montante em sede de recurso especial, por ser aplicável à espécie a Súmula n. 7/STJ” (Superior Tribunal de Justiça, AgRg no Ag 538.459/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.a Turma, j. 06.11.2003, DJ 09.12.2003, p. 288).
Aliás, em sede de STJ, há até julgados presumindo o dano moral no caso de perda de bagagem por grande lapso temporal. Cumpre lembrar que, muitas vezes, o passageiro chega ao destino sem a sua mala, onde estão as suas roupas, os seus bens de uso pessoal e de higiene íntima. Nesse sentido:
“Ação de indenização. Extravio de bagagem. Dano moral caracterizado. O extravio de bagagem por longo período traz, em si, a presunção da lesão moral causada ao passageiro, atraindo o dever de indenizar. Não se configurando valor abusivo no quantum fixado a título de ressarcimento, desnecessária a excepcional intervenção do STJ a respeito” (Superior Tribunal de Justiça, REsp 686.384/RS, j. 26.04.2005, 4.a Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ 30.05.2005, p. 393).
Quanto à capacidade para celebrar o contrato como passageiro, deve ser observada a regra geral de capacidade prevista para os negócios jurídicos (art. 104, I, do CC). Entretanto, em transportes urbanos, não é exigida tal capacidade plena, podendo fazer uso deles os passageiros menores ou incapazes, desde que paguem preço de passagem. Nessa linha, o art. 83 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) dispõe que “nenhuma criança poderá viajar para fora da comarca onde reside, desacompanhada dos pais ou responsável sem expressa autorização judicial”. Entretanto, duas exceções são feitas no mesmo dispositivo (§ 1.°), sendo desnecessária essa autorização:
a) Quando se tratar de comarca contígua à da residência da criança, se na mesma unidade da Federação, ou incluída na mesma região metropolitana.
b) Quando a criança estiver acompanhada dos pais, responsáveis, colateral maior, até o terceiro grau, desde que comprovado o parentesco documentalmente, ou ainda de pessoa maior, expressamente autorizada.
Anote-se, contudo, que a partir dos treze anos o adolescente pode viajar sozinho. Mesmo havendo um contrato celebrado por incapaz, não há que se falar em nulidade ou anulabilidade, diante dessas regras especiais de legitimação previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Estabelece o art. 735 da atual codificação que “a responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro contra qual tem ação regressiva”. Essa redação segue a Súmula 187 do STF, que previa o mesmo, ou seja, que a culpa exclusiva de terceiro não é excludente do dever de indenizar do transportador, assegurado o direito de regresso da transportadora em face desse terceiro.
Essa Súmula 187 do STF parece fundamentar o entendimento pelo qual a transportadora responde pelo assalto à mão armada. Surge a dúvida: pagando a indenização, a empresa transportadora terá ação regressiva contra a quadrilha de assaltantes? Fica claro ser um absurdo pensar dessa maneira. Não seria o caso de o Estado ser responsabilizado pela falta de segurança? Reafirme-se que este autor entende que sim. A questão está aprofundada no Volume 2 da presente coleção, no estudo da responsabilidade objetiva do Estado.
O art. 735 do CC/2002 e a Súmula 187 do STF servem também para responsabilizar as empresas aéreas por acidentes que causam a morte de passageiros. Mesmo havendo culpa exclusiva de terceiros, inclusive de agentes do Estado, as empresas que exploram o serviço devem indenizar os familiares das vítimas, tendo ação regressiva contra os responsáveis. O que se nota, assim, é que a aplicação do Código Civil de 2002 é até mais favorável aos consumidores do que o próprio CDC, eis que a Lei 8.078/1990 prevê a culpa exclusiva de terceiro como excludente de responsabilização, havendo prestação de serviços (art. 14, § 3.°). A título de exemplo, cite-se o célebre caso de acidente aéreo causado por pilotos de outra aeronave, respondendo a companhia aérea em face das vítimas e assegurado o seu direito de regresso contra os terceiros. Analisando tal situação fática, podem ser colacionados os seguintes arestos jurisprudenciais:
“Agravo regimental. Responsabilidade civil objetiva. Acidente aéreo envolvendo o avião Boeing 737-800, da Gol Linhas Aéreas, e o jato Embraer/Legacy 600, da Excel Air Service. Dano moral. Irmã da vítima falecida. Cabimento. Precedentes. 1. Os irmãos possuem legitimidade ativa ad causam para pleitear indenização por danos morais em razão do falecimento de outro irmão. Precedentes. 2. Restou comprovado, no caso ora em análise, conforme esclarecido pelo Tribunal local, que a vítima e a autora (sua irmã) eram ligados por fortes laços afetivos. 3. Ante as peculiaridades do caso, reduzo o valor indenizatório para R$ 120.000,00 (cento e vinte mil reais), acrescido de correção monetária, a partir desta data (Súmula n.° 362/STJ), e juros moratórios, a partir da citação. 4. Agravo regimental parcialmente provido” (STJ, AgRg-Ag 1.316.179/RJ, 4.a Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 14.12.2010, DJE 01.02.2011).
“Apelação cível. Ação de indenização. Acidente aéreo Gol X Legacy. Dano moral. Indenização a irmão de vítima fatal. Possibilidade. Majoração ou redução do quantum indenizatório. Responsabilidade objetiva da empresa aérea. Juros e correção monetária. Termo a quo de incidência. Sentença mantida. O irmão de vítima fatal em acidente aéreo é parte legítima para postular indenização por dano moral pela perda do ente querido. Valor da indenização, a ser paga ao irmão da vítima, pelo dano moral decorrente de acidente aéreo fatal deve ser estabelecido segundo critérios do julgador, de acordo com a noção da dor que a perda prematura e abrupta de um ente querido pode gerar no psiquismo do requerente, do quão próximos, psicologicamente, eram os entes etc. A fixação de juros de mora e de correção monetária, nas ações de indenização por dano moral, deve obedecer aos parâmetros efetivamente utilizados no julgamento de mérito, de forma que, se se considerar que a responsabilidade é contratual, os juros de mora incidem a partir da citação, mas, por outro lado, se se considerar que a responsabilidade é extracontratual, os juros de mora incidem a partir do evento danoso. Como é vedada a reforma do decisum em prejuízo da parte apelante, em caso de não provimento das razões de apelação, deve-se manter a forma de cálculo anteriormente fixada, ainda que em desacordo com o parâmetro que, em tese, deveria ser aplicado, sob pena de violação à proibição da reformatio in pejus. Recursos conhecidos e não providos” (TJDF, Recurso 2012.01.1.093449-7, Acórdão 642.944, 3.a Turma Cível, Rel. Des. Cesar Laboissiere Loyola, DJDFTE 10.01.2013, p. 231).
Relativamente ao transporte feito de forma gratuita, por amizade ou cortesia, popularmente denominado carona, não se subordina às normas do contrato de transporte (art. 736, caput, do CC). O dispositivo está sintonizado com a Súmula 145 do STJ, pela qual: “No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”.
Observe-se, nesse contexto, que no transporte por cortesia não há responsabilidade contratual objetiva daquele que dá a carona. A responsabilidade deste é extracontratual, subjetiva, dependendo da prova de culpa.
Forçoso concluir, porém, que a parte final da referida súmula deve ser revista, pois, segundo os arts. 944 e 945 do CC, que expressam a teoria da causalidade adequada, não se exige como essencial a existência de culpa grave ou dolo para a reparação civil. Na realidade, o dolo ou a culpa grave somente servem como parâmetros para a fixação da indenização. Todavia, infelizmente, o STJ ainda vem aplicando a súmula em sua redação original:
“Civil. Transporte de cortesia (carona). Morte do único passageiro. Indenização. Responsabilidade objetiva. Não cabimento. Súmula 145-STJ. 1 – ‘No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave’ (Súmula 145-STJ). 2 – Na espécie, padece o acórdão recorrido de flagrante dissídio com o entendimento desta Corte quando, firmando-se na tese da responsabilidade objetiva, despreza a aferição de culpa lato sensu (dolo e culpa grave). 3 – Recurso especial conhecido e provido” (STJ, REsp 153.690/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4.a Turma, j. 15.06.2004, DJ 23.08.2004, p. 238).
Complementando, não se considera gratuito o transporte quando, embora feito sem remuneração, trouxer ao transportador vantagens indiretas (art. 736, parágrafo único, do CC). Nesses casos, a responsabilidade daquele que transportou outrem volta a ser contratual objetiva. Pode ser citado como vantagens indiretas auferidas o pagamento de combustível ou pedágio por aquele que é transportado. A questão recomenda análise caso a caso.
Ilustrando, quando da IV Jornada de Direito Civil foi proposto enunciado de conteúdo interessante pelo juiz federal do TRF da 5.a Região, Bruno Leonardo Câmara Carrá: “Diante da regra do parágrafo único do art. 736 do Código Civil, é contratual a responsabilidade no transporte de pessoas que resulta da aquisição de bilhete de passagem em decorrência de sorteios em campanhas publicitárias ou programas de acúmulo de milhagens ofertados no mercado de consumo”. Foram as suas justificativas para o enunciado:
“O Código Civil de 2002, embora não empregando a nomenclatura tradicional da doutrina italiana, firmou no parágrafo único do art. 736 a distinção entre o contrato de transporte gratuito (que é equiparado ao contrato de transporte de pessoas e é sempre oneroso) e o benévolo/de mera cortesia (que não possui feição contratual). Portanto, somente se pode qualificar como desinteressado, ou mais propriamente benévolo, o transporte que se realiza sem qualquer pretensão de lucro ou vantagem. Apenas ‘o transporte de mera cortesia, a carona altruística, por amizade ou outro sentimento íntimo’. Assim nas chamadas promoções ou campanhas publicitárias, onde se oferecem viagens ou passeios aos contemplados, o transporte realizado como premiação tem feição puramente contratual. Também dentro desse conceito se incluiriam os prêmios (bilhetes de passagem) obtidos através de programas de milhagem. Em ambas, haverá um contrato de transporte de natureza gratuita (equiparado para todos os efeitos, como acima afirmado, ao contrato oneroso). O fundamento em tal assimilação reside no fato de que há um evidente ganho publicitário capitaneado pela empresa patrocinadora do evento ou que lançou o projeto de aquisição de milhas, com a maior divulgação de seu produto no mercado de consumo e, de conseguinte, com o aumento de clientela (aumento da venda de bilhetes de passagem e de carga conduzida). Muito dificilmente essas situações deixarão de ser regidas pelo Código de Defesa do Consumidor, o que permitirá, também, que a entidade que projeta o evento publicitário (quando não seja a própria empresa de transporte) seja solidariamente responsabilizada nos termos do art. 25, § 1.°, do CDC. Relativamente ao transporte aéreo, incumbe registrar ainda que o Código Brasileiro de Aeronáutica, para fins de responsabilidade civil, já considerava equiparada qualquer hipótese de transporte gratuito efetuado dentro dos denominados serviços aéreos públicos (voos de carreira), não importando a que título fosse”.
Concordava-se integralmente com o teor da proposta que infelizmente não foi discutida na IV Jornada de Direito Civil por falta de tempo e excesso de trabalho. Na VI Jornada de Direito Civil, realizada em 2013, o tema voltou a ser debatido. Felizmente, um bom enunciado sobre a matéria foi aprovado, com o seguinte teor: “no transporte aéreo, nacional e internacional, a responsabilidade do transportador em relação aos passageiros gratuitos, que viajarem por cortesia, é objetiva, devendo atender à integral reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais” (Enunciado n. 559 CJF/STJ).
Superado esse ponto, é importante ressaltar que o transporte gratuito não se confunde com o transporte clandestino, tendo implicações diversas no campo da responsabilidade civil. Silvio de Salvo Venosa anota que “No transporte clandestino, o transportador não sabe que está levando alguém ou alguma mercadoria. Lembre-se da hipótese de clandestinos que viajam em compartimento de carga não pressurizado de aeronaves e vêm a falecer, assim como clandestinos em caminhões e navios. Provada a clandestinidade, não há responsabilidade do transportador nem do prisma da responsabilidade contratual, nem do da responsabilidade aquiliana” (Direito..., 2004, p. 148).
Em resumo, sobre a responsabilidade civil no contrato de transporte, tanto de pessoas quanto de coisas, deve ser observado o seguinte quadro:
Transporte |
|
Clandestino |
Não há responsabilidade civil |
Puramente gratuito ou desinteressado |
Responsabilidade extracontratual (por ser benéfico exige o dolo ou culpa grave do transportador – Súmula 145 do STF) |
Gratuito com vantagens indiretas |
Responsabilidade contratual objetiva |
Oneroso (cláusula de garantia implícita) |
O transportador está sujeito aos horários e itinerários previstos, sob pena de responder por perdas e danos, salvo motivo de força maior. Essa é a regra constante do art. 737 do CC, que fundamenta eventual indenização no caso de atraso do transportador, o que faz com que o passageiro perca um compromisso remunerado que tinha no destino. O dispositivo reforça a tese pela qual o transportador assume obrigação de resultado, a gerar a sua responsabilidade objetiva. O dever de pontualidade do transportador, aliás, já constava do art. 24 do Decreto-lei 2.681/1912, que tratava da responsabilidade civil das empresas de estradas de ferro.
Complementando o art. 737 do CC, os arts. 230 e 231 da Lei 7.565/1986 (Código Brasileiro de Aeronáutica – CBA) preveem que havendo atraso de partida de voo por mais de quatro horas, o transportador deverá providenciar o embarque do passageiro, em outro voo, que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, ou restituirá de imediato, se o passageiro preferir, o valor do bilhete de passagem (art. 229 da Lei 7.565/1986). Além disso, todas as despesas correrão por conta do transportador, tanto no caso de atraso quanto no de suspensão do voo, tais como alimentação e hospedagem, sem prejuízo da indenização que couber, inclusive por danos morais. Araken de Assis analisa a questão com interessante enfoque social:
“Essas considerações se aplicam ao cumprimento do horário. Nos aeroportos centrais das grandes cidades brasileiras, homens e mulheres atazanados, à beira do histerismo coletivo, aguardam transladação ao seu destino, no qual se desincumbiriam de reuniões previamente agendadas. Não importa, neste caso, chegar ao destino. É inútil chegar depois do horário previsto: a viagem está arruinada. O art. 256, II, da Lei 7.656/1986 prevê, explicitamente, a responsabilidade do transportador aéreo pelo atraso. O dever existe para qualquer contrato de transporte, seja qual for o meio (rodoviário, ferroviário e aquaviário). Mas acontece de as condições atmosféricas, quer no ponto de partida, quer no de destino, impedirem decolagens e pousos. Tal fato, bem como outros similares, elide a responsabilidade do transportador” (Contratos..., 2005, p. 339).
O doutrinador refere-se, ao final da sua explanação, ao fechamento de aeroportos diante de péssimas condições climáticas, nas hipóteses em que não há teto para voo. Trata-se de uma força maior (evento previsível, mas inevitável), a obstar o nexo de causalidade. Portanto, não há que se falar, nessa situação, em responsabilidade da transportadora aérea. Lembra também o jurista que a Lei 7.565/1986 compara à força maior a determinação de autoridade aeronáutica para que o voo não ocorra, o que exclui a responsabilização da transportadora.
O debate também existe no tocante aos atrasos de voos diante do que se denomina operação padrão, movimento dos operadores no sistema de tráfego aéreo, que se tornou comum nos últimos tempos de caos aéreo, ou “apagão” no setor. Considerando-se que o fato é uma força maior, não haveria responsabilidade das empresas aéreas, pelo que consta do Código Civil. Entretanto, parece a este autor que a ocorrência está mais próxima da culpa exclusiva de terceiros, o que não elide a responsabilização das empresas aéreas. Pelo último caminho, portanto, há responsabilidade das empresas que exploram o setor, assegurado o direito de regresso contra os efetivamente responsáveis, no caso, o Estado. Nesse contexto, insta colacionar julgados que responsabilizam as empresas pelo chamado “apagão aéreo”. A primeira decisão trata o evento como sendo um fortuito interno, com relação direta com o risco da atividade desenvolvida pela empresa aérea (risco do negócio ou risco do empreendimento):
“Responsabilidade civil. Transporte aéreo. Danos morais e materiais. Apagão aéreo. Atraso no voo. Cliente que, para honrar compromisso, seguiu para o destino no seu próprio carro, depois de ficar muitas horas na sala de embarque, sem explicação ou atendimento adequados. Caso fortuito ou força maior. Não reconhecimento da excludente. ‘Fortuito interno’. Falha na prestação de serviço por omissão. Incidência do CDC. Reparação moral fixada em R$ 3.800,00, valor equivalente a dez salários mínimos. Manutenção. Princípios da razoabilidade e proporcionalidade atendidos. Valores relativos aos danos patrimoniais que devem ser corrigidos da data do prejuízo. Súmula n° 43 do Superior Tribunal de Justiça. Juros de mora. Termo inicial da citação. Honorários advocatícios mantidos. Respeito ao art. 20, § 3.°, do CPC. Recurso do autor parcialmente provido, não provido o da ré” (TJSP, Apelação n. 7256443-5, Acórdão n. 3462329, São Paulo, Vigésima Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Antônio Ribeiro Pinto, julgado em 22.01.2009, DJESP 25.02.2009).
“Transporte aéreo. Voo nacional. Atraso por cerca de seis horas, no chamado período do ‘apagão aéreo’. Dano moral. Cabimento. Fixação, porém, em valor razoável e proporcional. Recurso parcialmente provido. E cabível compensação por danos morais a passageiros obrigados a suportar atraso de voo por várias horas, gerando situação de indiscutível desconforto e aflição Mas o valor deve ser fixado com moderação, em termos razoáveis e proporcionais, evitando que a reparação enseje enriquecimento indevido, com manifestos abusos e exageros. (TJSP, Apelação n. 7322839-8, Acórdão n. 3480714, São Paulo, Décima Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Gilberto dos Santos, julgado em 05.02.2009, DJESP 12.03.2009).
O art. 738 do Código Civil em vigor dispõe que a pessoa transportada deve sujeitar-se às normas estabelecidas pelo transportador, constantes no bilhete ou afixadas à vista dos usuários, abstendo-se da prática de quaisquer atos que causem incômodo ou prejuízo, danifiquem o veículo, dificultem ou impeçam a execução normal de serviço. O comando legal em questão traz os deveres do passageiro.
A título de exemplo, se os prepostos da transportadora perceberem que o passageiro pode oferecer riscos à viagem, haverá possibilidade de impedir a sua entrada no meio de transporte. Concretizando, é o caso de passageiros bêbados que pretendem ingressar em voos nacionais ou internacionais.
Se o prejuízo sofrido por pessoa transportada for atribuível à transgressão de normas pelo próprio passageiro, o juiz reduzirá equitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano (art. 738, parágrafo único, do CC). A norma em questão baseia-se nos arts. 944 e 945 do Código em vigor e na aplicação da teoria da causalidade adequada, pela qual a indenização deve ser adequada às condutas dos envolvidos (Enunciado n. 47 do CJF/STJ).
Além disso, o primeiro dispositivo traz a ideia de culpa ou fato concorrente da vítima, que também pode ser discutida em casos de responsabilidade objetiva, visando a atenuar a responsabilidade do agente, diminuindo o valor do quantum indenizatório. Nesse sentido, na IV Jornada de Direito Civil, em 2006, foi aprovado enunciado a partir de proposta deste autor, pelo qual deveria ser suprimida a parte final do Enunciado n. 46, da I Jornada de Direito Civil, que previa a não aplicação do art. 944 do CC para os casos de responsabilidade objetiva (Enunciado n. 380 CJF/STJ). Em complemento e mais recentemente, na V Jornada de Direito Civil (2011), aprovou-se o Enunciado n. 459, também proposto por este autor, segundo o qual a conduta da vítima pode ser fator atenuante do nexo de causalidade na responsabilidade civil objetiva.
Na linha dos enunciados doutrinários em questão, é notório que a própria jurisprudência do STJ tem admitido a discussão de culpa concorrente da vítima no contrato de transporte, particularmente nos casos envolvendo o “pingente”, aquele que viaja pendurado no trem ou no ônibus:
“Recurso especial. Responsabilidade civil. Transporte ferroviário. ‘Pingente’. Culpa concorrente. Precedentes da corte. I – É dever da transportadora preservar a integridade física do passageiro e transportá-lo com segurança até o seu destino. II – A responsabilidade da companhia de transporte ferroviário não é excluída por viajar a vítima como ‘pingente’, podendo ser atenuada se demonstrada a culpa concorrente. Precedentes. Recurso especial parcialmente provido” (STJ, REsp 226.348/SP, Rel. Min. Castro Filho, 3.a Turma, j. 19.09.2006, DJ 23.10.2006, p. 294).
Em complemento, o transportador não pode recusar passageiros, salvo nos casos previstos nos regulamentos, ou se as condições de higiene ou de saúde do interessado o justificarem (art. 739 do CC). Como há, na grande maioria das vezes, uma relação de consumo, recorde-se aqui o teor do art. 39, II, do CDC, que considera prática abusiva não atender às demandas dos consumidores. A título de exemplo, transcrevem-se as anotações de Maria Helena Diniz quanto a esse dispositivo: “Assim sendo, se o viajante estiver fedendo, ante a sua sujeira corporal, ou afetado por moléstia contagiosa ou em estado de enfermidade física ou mental, que possa causar incômodo aos demais viajantes, o transportador poderá recusá-lo se impossível for conduzi-lo em compartimento separado. Da mesma forma permitida está em transporte interestadual a recusa de viajante incapaz sem estar devidamente autorizado para efetuar a viagem” (Código..., 2005, p. 596). Também servem para elucidar as ilustrações de Zeno Veloso: “Embora este artigo não mencione expressamente, devem ser incluídas outras situações, como a do passageiro que se encontre em trajes menores, indecentemente, ou o que está completamente embriagado ou drogado, ou que porta, na cintura, de modo ostensivo, arma branca ou de fogo. Isso para não falar no viajante que forçou a entrada em ônibus interurbano, na rodovia Transamazônica, trazendo uma serpente enrolada no braço, alegando que a cobra venenosa era seu animal de estimação e que tinha de viajar em sua companhia” (Novo Código Civil..., 2004, p. 680).
O art. 740 da atual codificação privada trata da possibilidade de rescisão, ou mais especificamente, de resilição unilateral do contrato de transporte pelo passageiro. Esta será possível antes da viagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de a passagem poder ser renegociada. Anote-se que parte da doutrina entende que se trata de um direito de arrependimento assegurado ao passageiro pela lei (GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Código Civil..., 2007). De qualquer forma, o comando deixa dúvidas, pois é utilizado o termo “rescindir”, que mais tem relação com a resilição unilateral, nos termos do caput do art. 473 do CC.
Mesmo depois de iniciada a viagem, ou seja, no meio do percurso, é facultado ao passageiro desistir do transporte, tendo direito à restituição do valor correspondente ao trecho não utilizado, desde que fique provado que outra pessoa haja sido transportada em seu lugar no percurso faltante (art. 740, § 1.°, do CC).
Entretanto, se o usuário não embarcar, não terá direito, por regra, ao reembolso do valor da passagem, salvo se conseguir provar que uma outra pessoa foi transportada em seu lugar, caso em que lhe será restituído o valor do bilhete não utilizado (§ 2.° do art. 740 do CC).
Fica a ressalva, contudo, de que nas hipóteses de resilição unilateral o transportador terá direito à retenção de até cinco por cento (5%) da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória. Como se trata de cláusula penal, sendo esta exagerada – o que será difícil de ocorrer na prática, diga-se de passagem –, pode-se aplicar a redução equitativa da multa constante do art. 413 do CC, como corolário da eficácia interna do princípio da função social dos contratos.
Como restou evidenciado, pois foi dito e redito, o contrato de transporte traz como conteúdo uma obrigação de resultado do transportador. Assim sendo, preceitua o art. 741 do CC que, “interrompendo-se a viagem por qualquer motivo alheio à vontade do transportador, ainda que em consequência de evento imprevisível, fica ele obrigado a concluir o transporte contratado em outro veículo da mesma categoria, ou, com a anuência do passageiro, por modalidade diferente, à sua custa, correndo também por sua conta as despesas de estada e alimentação do usuário, durante a espera de novo transporte”. A título de exemplo, se em uma viagem de São Paulo a Passos, Minas Gerais, o ônibus quebra por problemas no motor, a empresa transportadora será obrigada a disponibilizar aos passageiros um outro ônibus para concluir o transporte. Não sendo isso possível de imediato, deverá arcar com todas as despesas de estadia e alimentação que os passageiros tiverem enquanto o novo ônibus não é disponibilizado.
Ainda a ilustrar a incidência do art. 741 do CC, decisio do Tribunal do Distrito Federal aduziu que, “na forma do art. 737 do Código Civil, o transportador está sujeito aos horários e itinerários previstos, sob pena de responder por perdas e danos. A responsabilidade do transportado não se encerra com o endosso do bilhete para outra companhia, mas subsiste até o efetivo cumprimento do contrato. O cancelamento de voo de retorno obriga o transportador a ressarcir as despesas de estada e alimentação do usuário, na forma do art. 741 do Código Civil, bem como dos demais danos, na forma do art. 475 do mesmo diploma. A reparação civil deve abranger os danos morais decorrentes dos transtornos decorrentes de um dia a mais de viagem não programada. A indenização fixada em R$ 6.000,00 para os dois autores está em conformidade com as circunstâncias do caso e com a necessidade de compensação e prevenção dos danos. 5 – Recurso conhecido, mas não provido. Sentença mantida. O recorrente pagará as custas e os honorários advocatícios, no valor de R$ 900,00 (novecentos reais)” (TJDF, Recurso 2011.01.1.204996-5, Acórdão 617.589, 2.a Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Rel. Juiz Aiston Henrique de Sousa, DJDFTE 13.09.2012, p. 184).
Encerrando a análise do transporte de pessoas, o art. 742 do CC traz, a favor do transportador, o direito de retenção sobre a bagagem de passageiro e outros objetos pessoais deste, para garantir-se do pagamento do valor da passagem que não tiver sido feito no início ou durante o percurso.
Quanto à natureza jurídica do instituto em questão, não se trata de um penhor legal, mas somente de um direito pessoal colocado à disposição da parte contratual, conforme ensina Sílvio de Salvo Venosa: “Nessa hipótese, não há penhor legal, mas direito procedimental de retenção sobre a bagagem do passageiro, que poderá ser alegado também como matéria de defesa, enquanto não pago o valor da passagem. Da mesma forma, uma vez realizado o transporte, o transportador poderá validamente reter a bagagem do passageiro, e seus objetos pessoais transportados até o efetivo pagamento. A hipótese é de pagamento diferido para o final da viagem. Não se aplica, por exemplo, se foi contratado o pagamento da passagem a prazo” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito..., 2005, p. 360).
Pelo contrato de transporte de coisas, o expedidor ou remetente entrega bens corpóreos ou mercadorias ao transportador, para que o último os leve até um destinatário, com pontualidade e segurança. É preciso ressalvar, contudo, que o destinatário pode ser o próprio expedidor.
A remuneração devida ao transportador, nesse caso, é denominada frete. Como ocorre com o transporte de pessoas, o transportador de coisas assume uma obrigação de resultado, o que justifica a sua responsabilidade contratual objetiva.
A coisa, entregue ao transportador, deve necessariamente estar caracterizada pela sua natureza, valor, peso e quantidade, e o que mais for necessário para que não se confunda com outras. Também o destinatário deverá ser indicado ao menos pelo nome e endereço (art. 750 do CC). Isso, tendendo ao cumprimento perfeito do contrato, à satisfação obrigacional.
Dispõe o art. 744 do CC que ao receber a coisa o transportador emitirá conhecimento com a menção dos dados que a identifiquem, obedecido ao disposto em lei especial. Trata-se do conhecimento de frete ou de carga, que comprova o recebimento da coisa e a obrigação de transportá-la. Esse documento é um título de crédito atípico, inominado ou impróprio, devendo ser aplicadas a eles as normas previstas no atual Código Civil, a partir do art. 887.
Ainda quanto ao conhecimento de frete, o transportador poderá exigir que o remetente lhe entregue, devidamente assinada, a relação discriminada das coisas a serem transportadas, em duas vias – uma das quais, por ele devidamente autenticada, fará parte integrante do conhecimento (art. 744, parágrafo único, do CC). Essa regra, que decorre do dever de informar relacionado com a boa-fé objetiva, pretende evitar que o expedidor pleiteie eventual indenização à qual não tem direito.
O art. 745 do CC apresenta problema técnico, merecendo transcrição destacada:
“Art. 745. Em caso de informação inexata ou falsa descrição no documento a que se refere o artigo antecedente, será o transportador indenizado pelo prejuízo que sofrer, devendo a ação respectiva ser ajuizada no prazo de cento e vinte dias, a contar daquele ato, sob pena de decadência.”
Como se pode perceber, o dispositivo prevê que o transportador terá um direito subjetivo de pleitear indenização por perdas e danos, se o contratante prestar falsa informação no conhecimento de frete. Para essa ação condenatória, o comando legal prevê prazo decadencial de 120 dias, contados da data em que foi prestada a informação inexata.
O problema aqui é que o dispositivo entra em conflito com a tese de Agnelo Amorim Filho, adotada pela nova codificação quanto à prescrição e decadência. Como se sabe, esse autor relacionou o prazo de prescrição a ações condenatórias e os prazos decadenciais a ações constitutivas positivas ou negativas (RT 300/7 e 744/725).
Ora, a ação indenizatória referenciada no art. 745 do CC é condenatória, não se justificando o prazo decadencial que nele consta. Trata-se de um descuido do legislador, um sério cochilo, eis que foi sua intenção concentrar todos os prazos de prescrição nos arts. 205 e 206 do Código Civil de 2002. Isso, em prol do princípio da operabilidade, que busca a facilitação do Direito Privado. Aqui, a regra é quebrada, infelizmente, e de forma atécnica. Desse modo, é de se concordar integralmente com Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery quando esses autores afirmam, com veemência, que não obstante a lei referenciar que o prazo é decadencial, trata-se de prazo prescricional, diante da natureza condenatória da ação prevista na norma (Código Civil..., 2005, p. 496).
Superado esse ponto, prescreve o art. 746 do CC que poderá o transportador recusar a coisa cuja embalagem for inadequada, bem como a que possa pôr em risco a saúde das pessoas envolvidas no transporte, danificar o veículo ou outros bens. Isso, inclusive, é motivo para a rescisão ou resolução do contrato celebrado.
A norma é complementada por outra, pela qual o transportador deverá obrigatoriamente recusar a coisa cujo transporte ou a comercialização não sejam permitidos, ou que venha desacompanhada dos documentos exigidos por lei ou regulamento (art. 747 do CC). Trata-se de dever legal imposto ao transportador, exigindo-se a licitude das coisas a serem transportadas, sob pena de sua responsabilização nos âmbitos civil, criminal e administrativo.
Da mesma forma como ocorre no transporte de pessoas, é facultado ao remetente, até a entrega da coisa, desistir do transporte e pedi-la de volta. Pode, ainda, ordenar que a coisa seja entregue a outro destinatário, pagando, em ambos os casos, os acréscimos de despesas decorrentes da contraordem, mais as perdas e danos que houver (art. 748 do CC).
O transportador conduzirá a coisa ao seu destino, tomando todas as cautelas necessárias para mantê-la em bom estado e entregá-la no prazo ajustado ou previsto (749 do CC). Esse dispositivo traz a cláusula de incolumidade especificamente no transporte de coisas, a fundamentar a responsabilidade objetiva, exaustivamente citada. Repise-se que a cláusula de não indenizar é inoperante também no transporte de mercadorias (Súmula 161 do STF).
A cláusula de incolumidade ainda é retirada do art. 750 do Código Civil em vigor, pois a responsabilidade do transportador limita-se ao valor constante do conhecimento. Essa responsabilidade tem início no momento em que ele ou os seus prepostos recebem a coisa e somente termina quando é entregue ao destinatário ou depositada em juízo, se o destinatário não for encontrado.
Quanto à limitação constante desse último dispositivo, concorda-se integralmente com a Professora Maria Helena Diniz, quando anota que o limite da responsabilidade ao valor atribuído pelo contratante somente se refere aos casos de perda e avaria: “O transportador responderá pelas perdas e danos que remetente, destinatário ou terceiro vierem a sofrer com o transporte, em razão de atraso, desvio de itinerário, etc., sem qualquer limitação ao valor contido no conhecimento de frete” (Código..., 2005, p. 301).
Sem prejuízo disso, se o expedidor for consumidor, haverá prestação de serviço regida pelo CDC, não se aplicando a referida limitação aos demais danos sofridos, tendo em vista a aplicação do princípio da reparação integral constante da Lei Consumerista (art. 6.°, V, da Lei 8.078/1990). Valem os mesmos comentários que foram feitos quando do estudo do transporte de pessoas.
A coisa depositada ou guardada nos armazéns do transportador, em virtude de contrato de transporte, rege-se, no que couber, pelas disposições relativas ao contrato de depósito. Essa a norma do art. 751 do CC, que ordena a aplicação das regras contidas entre os arts. 627 a 652 para o transporte, em casos tais.
Ato contínuo, preconiza o art. 752 do CC que, “desembarcadas as mercadorias, o transportador não é obrigado a dar aviso ao destinatário, se assim não foi convencionado, dependendo também de ajuste a entrega a domicílio, e devem constar do conhecimento de embarque as cláusulas de aviso ou de entrega a domicílio”. Apesar de a norma ser clara, não concordamos definitivamente com o teor da inovação, particularmente com a primeira parte do dispositivo.
Isso porque o comando legal entra em conflito com o princípio da boa-fé objetiva, particularmente com o dever anexo de informar, ao prever que, em regra, o transportador não é obrigado a avisar ao destinatário que o contrato foi cumprido. Ora, trata-se de um dever anexo, ínsito a qualquer negócio patrimonial, não havendo sequer a necessidade de previsão no instrumento.
Se o transporte não puder ser feito ou sofrer longa interrupção, em razão de obstrução de vias, conflitos armados, manifestações populares, suspensão do tráfego diante de queda de barreira, entre outras causas, o transportador solicitará, de imediato, instruções do remetente sobre como agir. Ademais, zelará pela coisa, por cujo perecimento ou deterioração responderá, salvo caso fortuito e força maior (art. 753 do CC). Como se pode perceber, ao contrário do dispositivo anterior, este traz como conteúdo o dever anexo de informar. O Código Civil, aqui, entra em contradição consigo mesmo, em mais um sério cochilo do legislador.
Se esse impedimento perdurar, sem culpa do transportador e o remetente não se manifestar, poderá o transportador depositar a coisa em juízo, ou posteriormente vendê-la, logicamente obedecidos os preceitos legais e regulamentares ou os costumes (art. 753, § 1.°, do CC).
No entanto, se o impedimento decorrer de responsabilidade do transportador, este poderá depositar a coisa por sua conta e risco. Nesse último caso, a coisa somente poderá ser vendida se for perecível (art. 753, § 2.°, do CC).
Em ambos os casos, havendo culpa ou não do transportador, tem ele o dever de informar o remetente sobre a realização do depósito ou da eventual venda. Curiosamente e para o bem, o § 3.° do art. 753 volta a trazer o dever anexo de informar, contradizendo o criticado e malfadado art. 752 do CC.
Se o transportador mantiver a coisa depositada em seus próprios armazéns, continuará a responder pela sua guarda e conservação, sendo-lhe devida, porém, uma remuneração pela custódia. Essa remuneração pode ser ajustada por contrato ou será fixada pelos usos adotados em cada sistema de transporte (art. 753, § 4.°, do CC). Nesta hipótese, haverá uma coligação de contratos decorrente de lei (transporte + depósito), aplicando-se as regras de ambos.
Ao final do percurso, as mercadorias deverão ser entregues ao destinatário, ou a quem apresente o conhecimento de frete endossado. Essa pessoa tem o dever de conferi-las e apresentar as reclamações que tiver, sob pena de decadência dos direitos (art. 754 do CC). O dispositivo traz o dever de vistoria por parte do destinatário, que pode ser o próprio emitente. Aplicando a última norma ao transporte marítimo, para ilustrar, colaciona-se acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Seguro. Transporte internacional marítimo de mercadoria a granel. Ação regressiva de seguradora contra a dona do navio. Constatação de falta de parte da carga que supera o percentual de perda costumeiramente tolerável. Ausência, todavia, de reclamação em tempo hábil, conforme exigido no disposto no art. 754 do Código Civil, com as necessárias ressalvas. Vistoria unilateral feita mais de seis meses após o desembarque. Improcedência da ação por tais motivos que não afronta o direito a inversão ao ônus da prova em razão do CDC. Decisão mantida. Apelação improvida” (TJSP, Apelação 7302745-5, Acórdão 3516458, Santos, 14.a Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Tarcisio Beraldo, j. 18.02.2009, DJESP 03.04.2009).
O parágrafo único desse art. 754 determina que, havendo avaria ou perda parcial da coisa transportada não perceptível à primeira vista, o destinatário conserva a sua ação contra o transportador, desde que denuncie o dano em dez dias, a contar da entrega.
Conjugando-se os dois comandos, percebe-se, mais uma vez, um equívoco do legislador ao prever prazo de natureza decadencial para a ação indenizatória. Como da vez anterior, filia-se a Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, visto que, apesar de o caput tratar de decadência, havendo ação indenizatória, o prazo é de prescrição (Código Civil..., 2005, p. 498).
Em virtude de o prazo previsto no parágrafo único do art. 754 do CC ser exíguo (10 dias), defendemos que o prazo será, em regra, prescricional de três anos, conforme o art. 206, § 3.°, V, do CC. Em havendo relação de consumo e fato do serviço, utiliza-se o prazo prescricional de cinco anos, previsto no art. 27 do CDC.
Quanto à matéria, ainda está vigente a Súmula 109 do STJ, pela qual “O reconhecimento do direito à indenização, por falta de mercadoria transportada via marítima, independe de vistoria”. Isso porque o art. 754 do CC/2002 equivale parcialmente ao art. 109 do revogado Código Comercial de 1850, tendo sido a súmula editada na vigência deste último dispositivo. Em conclusão, nada mudou.
Em havendo dúvida acerca de quem seja o destinatário da coisa, o transportador tem o dever de depositar a mercadoria em juízo, desde que não lhe seja possível obter informações do emissor ou remetente. Porém, se a demora do depósito puder provocar a deterioração da coisa o transportador deverá vendê-la, depositando o valor obtido em juízo (art. 755 do CC).
O outrora comentado art. 756 do CC traz a solidariedade entre todos os transportadores no transporte cumulativo. Porém, deve ser ressalvada a apuração final da responsabilidade entre eles, de modo que o ressarcimento recaia, por inteiro, ou mesmo proporcionalmente, naquele em cujo percurso houver ocorrido o dano.
Como se constata, o transportador não culpado que pagar a indenização ao remetente sub-roga-se nos direitos de credor em relação a eventual culpado. Concluindo, reconhece-se o direito de regresso em face do responsável pelo evento danoso.
Encerrando, cumpre informar que entrou em vigor a Lei 11.442/2007 que, revogando a Lei 6.813/1980, passou a tratar do transporte rodoviário de cargas, realizado em vias públicas, no território nacional, por conta de terceiros e mediante remuneração. Em consonância com o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, a nova lei traz a responsabilidade objetiva do transportador, seja por ato próprio ou de preposto. Vale dizer que o seu art. 18 consagra prazo prescricional de um ano para a pretensão à reparação pelos danos relativos a esses contratos de transporte, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano pela parte interessada. A lei, assim, adotou a teoria da actio nata, pela qual o prazo prescricional deve ter início a partir do conhecimento da lesão ao direito subjetivo.
Transporte. Conceito: Trata-se do contrato pelo qual alguém se obriga, mediante uma determinada remuneração, a transportar de um local para outro pessoas ou coisas, por meio terrestre (rodoviário e ferroviário), aquático (marítimo, fluvial e lacustre) ou aéreo.
Natureza jurídica: Contrato bilateral, oneroso, consensual, comutativo e informal. Na grande maioria das vezes o transporte assume a forma de contrato de consumo (Lei 8.078/1990) ou de adesão. Assim, é possível buscar diálogos entre o CC e o CDC no que se refere ao contrato em questão, aplicando-se os princípios sociais contratuais.
Modalidades de transporte tratadas pelo Código Civil de 2002:
a) Transporte de pessoas: O transporte de pessoas é aquele pelo qual o transportador se obriga a levar uma pessoa e a sua bagagem até o destino, com total segurança, mantendo incólume os seus aspectos físicos e patrimoniais. São partes no contrato o transportador, que é aquele que se obriga a realizar o transporte, e o passageiro, aquele que contrata o transporte, ou seja, aquele que será transportado mediante o pagamento do preço, denominado passagem. A obrigação assumida pelo transportador é sempre de resultado, justamente diante dessa cláusula de incolumidade, o que fundamenta a sua responsabilização independentemente de culpa, em caso de prejuízo (responsabilidade objetiva).
b) Transporte de coisas: Pelo contrato de transporte de coisas, o expedidor ou remetente entrega bens corpóreos ou mercadorias ao transportador, para que o mesmo os leve até um destinatário, com pontualidade e segurança. É preciso ressalvar, contudo, que o destinatário pode ser o próprio expedidor. A remuneração devida ao transportador, nesse caso, é denominada frete. Como ocorre com o transporte de pessoas, o transportador de coisas também assume uma obrigação de resultado, o que justifica a sua responsabilidade contratual objetiva. A coisa, entregue ao transportador, deve necessariamente estar caracterizada pela sua natureza, valor, peso e quantidade, e o que mais for necessário para que não se confunda com outras. Também deverá constar a identificação de quem seja o destinatário.
1. (Advogado Nossa Caixa – FCC/2011) O transportador
(A) pode inserir no contrato de transporte cláusula que exclua a sua responsabilidade por danos causados às bagagens das pessoas transportadas fora das hipóteses de força maior.
(B) não responde pelos danos causados às pessoas transportadas se o acidente tiver ocorrido por culpa de terceiro.
(C) pode inserir no contrato de transporte cláusula que exclua a sua responsabilidade por danos causados às pessoas transportadas fora das hipóteses de força maior.
(D) não pode recusar passageiros, mesmo se as condições de higiene ou saúde do interessado o justificarem.
(E) tem direito de retenção sobre a bagagem de passageiros e outros objetos pessoais deste, uma vez realizado o transporte, para garantir-se do pagamento do valor da passagem que não tiver sido feito no início ou durante o percurso.
2. (Juiz de Direito – MG – 2005) Em relação ao contrato de transporte, conforme dispõe o Código Civil, é INCORRETO dizer que:
(A) interrompida a viagem, em consequência de evento imprevisível, não fica o transportador obrigado a concluir o transporte.
(B) a responsabilidade do transportador começa no momento em que ele recebe a coisa a ser transportada.
(C) transportador e passageiro, concorrendo para a ocorrência do dano, suportarão as consequências divididas equitativamente.
(D) não se subordina às normas do contrato de transporte aquele feito gratuitamente, por amizade ou cortesia.
3. (Procurador do Estado de SP – 2005) José, empregado de uma empresa transportadora de passageiros, conduzindo o ônibus dessa empresa durante um temporal, avançou sobre via já inundada. O ônibus foi arrastado pela força das águas pluviais até ficar submerso, o que causou a morte de alguns passageiros. Diante desse fato,
(A) a empresa de ônibus não é responsável, em razão de exclusão convencional de responsabilidade, em face de eventos decorrentes de força maior e caso fortuito.
(B) não há responsáveis civis, em razão de excludente de força maior, por ser o temporal decorrente da própria natureza.
(C) José é responsável civilmente pelo ocorrido, por ter sido imprudente na condução do veículo, sem poder invocar qualquer excludente.
(D) a empresa de ônibus é responsável, uma vez que a responsabilidade do transportador é subjetiva e houve uma conduta culposa.
(E) José, como preposto da empresa, é responsável objetivamente pela atividade que desenvolve.
4. (Juiz de Direito – TJDF – 2004) Analise as proposições e indique a alternativa correta.
Proposições:
I – Não é válida a cláusula excludente da responsabilidade do transportador, salvo quanto às bagagens do passageiro.
II – A sub-rogação que se opera em benefício do segurador que paga a indenização não alcança a hipótese de seguro de pessoas.
III – O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.
Alternativas:
(A) Todas as proposições são verdadeiras.
(B) Todas as proposições são falsas.
(C) Apenas uma das proposições é verdadeira.
(D) Apenas uma das proposições é falsa.
5. (Exame de Ordem – 126.° SP) O emitente de um “conhecimento de transporte” será o
(A) remetente da mercadoria, que dá conhecimento do transporte e das condições para tanto pactuadas.
(B) destinatário da mercadoria, que dá conhecimento da entrega, atestando a condição em que as recebeu.
(C) transportador da mercadoria, que assume a obrigação de transportá-la.
(D) depositário da mercadoria, quando da entrega da mesma ao transportador, tomando ciência da ordem para tanto emitida pelo depositante.
6. (Juiz de Direito – MG – 2006) Em relação ao contrato de transporte de pessoas, conforme dispõe o Código Civil, quando o transportador responde, em Juízo, por perdas e danos à pessoa transportada, e verificando-se que esta agiu, transgredindo normas e instruções regulamentares, sendo o prejuízo a isto atribuído, é CORRETO dizer que o juiz:
(A) poderá excluir o transportador da obrigação de reparar os danos;
(B) considerará irrelevante a circunstância, diante da natureza e da responsabilidade originada do contrato de transporte;
(C) reduzirá equitativamente a indenização, na medida em que a vítima houver concorrido para a ocorrência do dano;
(D) concederá ao transportador o direito de reter até cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória.
7. (Juiz de Direito – DF – 2006) Analise as proposições e assinale a única alternativa correta.
I – Na estipulação em favor de terceiro é essencial que o benefício seja recebido sem contraprestação e represente vantagem suscetível de apreciação econômica.
II – No seguro de vida, contratado antes da separação de fato do segurado e a esposa, se designada como beneficiária a mulher que o segurado, depois de separar da esposa, passou a manter relacionamento amoroso, a indenização será paga aos herdeiros e a esposa.
III – Durante a viagem, por roubo no interior do veículo que resultou na morte de passageiro, não responde a empresa de ônibus.
(A) apenas uma das proposições é falsa.
(B) apenas uma das proposições é verdadeira.
(C) todas as proposições são verdadeiras.
(D) todas as proposições são falsas.
8. (Exame de Ordem – 133.° SP) No tocante ao contrato de transporte de pessoas, assinale a alternativa correta.
(A) O transporte gratuito, assim considerado aquele realizado por amizade ou cortesia, e sem vantagens indiretas para o transportador, submete-se às mesmas regras do contrato de transporte de pessoas regulado pelo Código Civil.
(B) É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização.
(C) É válida a cláusula de excludente de responsabilidade, quando demonstrado pelo transportador a ciência inequívoca do transportado acerca de tal condição.
(D) O transportador não responde pelos danos causados ao transportado quando demonstrada a culpa exclusiva de terceiro pelo acidente.
9. (Magistratura de São Paulo. 2008. Exame Oral) O art. 734 do CC/02 trata do contrato de transporte de pessoas. O legislador deliberadamente excluiu o caso fortuito?
Resposta: Não. O artigo exclui a cláusula de não indenizar, mas não a possibilidade do transportador alegar o caso fortuito e a força maior como excludentes de nexo de causalidade. Isso fica claro pelos julgados do Superior Tribunal de Justiça que reconhecem o assalto ao ônibus como excludente de responsabilidade.
10. (OAB/Nacional 2008 – III) Supondo que Cláudio viaje de ônibus, para ir do interior de um estado à capital, assinale a opção correta.
(A) Caso a viagem tenha de ser interrompida em consequência de evento imprevisível, a empresa responsável pelo transporte não é obrigada a concluir o trajeto.
(B) Se Cláudio não tiver pago a passagem e se recusar a fazê-lo quando chegar ao destino, será lícito à empresa reter objetos pessoais pertencentes a ele como garantia do pagamento.
(C) Cláudio, sob pena de ferir a boa-fé objetiva, somente poderá rescindir o contrato com a empresa de transporte, antes de iniciada a viagem, caso demonstre justo motivo.
(D) Cláudio não poderá desistir do transporte após iniciada a viagem.
11. (Advogado/SPTrans – VUNESP/2012) É correto afirmar, sobre o contrato de transporte:
(A) é vedado ao transportador exigir declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização.
(B) o usuário que deixar de embarcar tem direito ao reembolso do valor da passagem, ainda que outra pessoa não tenha sido transportada em seu lugar.
(C) o transportador fica exonerado de concluir o transporte caso a viagem seja interrompida por motivo imprevisível, alheio à sua vontade.
(D) concluído o transporte, o transportador tem direito de retenção sobre a bagagem para garantir o pagamento do valor da passagem.
(E) o transporte feito gratuitamente se submete às mesmas normas do contrato de transporte.
12. (Advogado/SPTrans – VUNESP/2012) Leonardo saiu de seu trabalho e entrou em transporte coletivo com destino à sua casa. Em determinado ponto do trajeto, o veículo em que se encontrava foi atingido por um caminhão que avançou o sinal vermelho do semáforo, causando danos a Leonardo. O veículo em que estava Leonardo, bem como seu condutor, estavam plenamente regulares. Considerando o caso proposto, assinale a assertiva correta no que tange à responsabilidade civil.
(A) A companhia que transporta Leonardo não é civilmente responsável pelo acidente, na medida em que há responsabilidade exclusiva de terceiro
(B) A companhia que transporta Leonardo será subsidiariamente responsável, caso o condutor do caminhão, por qualquer razão, não o indenize.
(C) A companhia que transporta Leonardo não será responsável pelo acidente, desde que preste socorro ao passageiro.
(D) A companhia que transporta Leonardo é civilmente responsável pela indenização ao passageiro, apesar da culpa de terceiro.
(E) A companhia que transporta Leonardo é civilmente responsável por cinquenta por cento da indenização, nos termos da lei.
13. (Juiz Federal – 3.a Região – CESPE/2011) Supondo que uma pessoa adquira de determinada empresa de transporte passagem para viajar do Rio de Janeiro a São Paulo, fazendo uso de programa de milhagem oferecido por outra empresa, conveniada à primeira, assinale a opção correta.
(A) Sendo a gratuidade, na hipótese, apenas aparente, caracteriza-se o contrato de transporte típico.
(B) Por ser gratuito, o contrato descrito não se caracteriza como de transporte.
(C) Configura-se o negócio descrito como contrato de transporte se entre as partes for firmado instrumento.
(D) Trata-se de simples contrato de prestação de serviços, porque o transporte, no caso, é cumulativo.
(E) Não existe contrato na situação descrita, mas simples ato jurídico não negocial.
1 – E |
2 – A |
3 – C |
4 – D |
5 – C |
6 – C |
7 – C |
8 – B |
10 – B |
11 – D |
12 – D |
13 – A |